1872, 1922 e 1972: Um balanço histórico das efemérides da Independência do Brasil
- Fábio Monteiro
- 14 de fev. de 2022
- 15 min de leitura
O 7 de setembro de 1822 nem sempre foi o mesmo: a data mobilizou diferentes passados em busca de diversas tendências históricas

RESUMO: O presente artigo foi confeccionado para a abertura da I Semana de História da Faculdade de Educação e Artes da UNIVAP, ocorrida em agosto de 2022. Dentre seus propósitos tem-se um balanço histórico e uma breve historiografia sobre as efemérides em torno da data de 7 de setembro de 1822, historicamente assumida como sinônimo da Independência do Brasil.
INTRODUÇÃO: COMO E O QUE SE COMEMORA
Em julho de 2022 foi noticiado de que o coração de dom Pedro I será emprestado pelo prefeito de Porto ao Brasil tendo em vista as efemérides em torno do bicentenário de 1822, ano da Independência do Brasil. Como se sabe, a relíquia foi doada à cidade por escrito pelo próprio Imperador e segue armazenado a cinco chaves em uma Igreja do século XVIII. De acordo com o site de notícias do G1[1], o programa Fantástico da Rede Globo chegou a entrar em contato com o Ministério das Relações Exteriores a fim de saber mais sobre o empréstimo e a efeméride, porém não foi correspondido.
Em que pese a conhecida falta de trato diplomático do MRE com os meios de comunicação brasileiros, deve-se ter em mente que é a primeira vez que um governo se mostra despreparado para lidar com uma efeméride de tamanha envergadura. A se tomar os eventos mais recentes, pode-se lembrar da grandiosidade dos “500 anos do Brasil” que envolveram as grandes mídias, artistas, intelectuais e diversos setores civis tanto do Brasil quanto de Portugal. A efeméride foi avaliada como trágica por Jobson Arruda[2] por, dentre outras razões, ter tomado como ponto de partida Porto Seguro, Bahia, reforçando assim o seu caráter eurocêntrico[3].
Na sequência, podemos citar a realização da Copa do Mundo de 2014 em solo brasileiro, um evento que custou R$ 26 bilhões aos cofres públicos e que, como analisou o cientista político Michel Netto[4], provocou uma forte mobilização social envolvendo três grandes eixos: a agenda dos direitos humanos, o papel do Estado e as finalidades do dinheiro público e a reconstrução da imagem de um “Brasil maior” e seu reposicionamento no cenário internacional pós-crise de 2008. Ao fim e ao cabo, o evento esportivo parece ter reeditado o chamado “maracanazo” de 1950 quando perdeu de virada para a seleção uruguaia no dia 16 de julho: afinal, guardada as proporções, tanto Eurico Dutra com seu Plano Salte quanto Dilma com sua Nova Matriz Econômica esperavam tirar proveito do momentum esportivo, mas entregaram um país pior do que encontraram.
Aliás, por falar em “país pior”, é bastante provável que esse recorte perca o seu potencial comparativo quando se preza pela sensatez para se encarar o quadro geral que o governo Jair Bolsonaro oferece ao país em 2022: o IPCA acumulado saltou de 3,78% em 2019 para 11,7%[5], a taxa de desocupação gira em torno de 13, 7%, o país retornou ao Mapa da Fome somando mais de 28 milhões vivendo abaixo da linha da pobreza, além de o índice de letalidade sobre as pessoas negras ser duas vezes e meio maior do que o das pessoas brancas[6] - isto sem elencar a má gestão diante da pandemia do Covid-19 e o desmonte da política ambiental[7]. Em resumo, pergunta-se por que celebrar a independência? Ou antes: cabe aos historiadores e às historiadoras celebrarem eventos?
Essa breve introdução atende aos seguintes propósitos: apresentar um panorama histórico e um breve balanço historiográfico sobre as efemérides em torno de 1822. De saída, tenha-se em mente que isso significa dialogar com as contribuições de Pollack, Nora, dentre outros autores que leem as relações entre memória e história como um campo de forças, uma zona tensa emaranhada de tramas de poder, já que a pesquisa histórica constrói imagens do passado a partir das condições do tempo presente e, sobretudo, almejando iluminar caminhos para determinados futuros. Isto posto, tem-se a seguir um breve histórico de como foram as efemérides realizadas nos anos de 1872, 1922 e 1972 sobre a independência do Brasil, entendida a partir do dia 7 de setembro em lugar do dia 12 de outubro quando Pedro I foi, de fato, empossado.
1872 E A FEBRE DOS MONUMENTOS
O Brasil Império fez pouco caso do aniversário de 50 anos do evento em 1872. Resumiu-se na inauguração da estátua de José Bonifácio no Largo São Francisco, no centro da então capital carioca. Ao contextualizar os festejos daquele ano, o historiador Jurandir Malerba informa que, assim como no Brasil, as comemorações dos cinquentenários das independências latino-americanas também não receberam muita atenção das nações em desenvolvimento naquele momento[8].
Já o pesquisador Rafael Scarelli sublinha que, naquele momento, o país vivia a “febre dos monumentos”, um fenômeno assimilado da França onde era conhecido como “statuomanie” e consistia na codificação do tecido social com personalidades históricas que teriam contribuído com o avanço dos princípios laicos e republicanos, conforme exigia a Terceira República Francesa (1870-1940). Contudo, no Brasil, a tal “febre dos monumentos” serviu para sinalizar à sociedade civil a existência das diferentes tendências políticas que emergiam no Império pós-guerra do Paraguai, tais como os positivistas, os jacobinos e os liberais como define Murilo de Carvalho. A esse respeito, Scarelli registra que
A disputa pela narrativa histórica do advento do regime republicano e pela definição de quais personagens o protagonizaram ensejou o esforço de produção de imagens e símbolos, como os monumentos positivistas. Por sua vez, Paulo Knauss, observando os diferentes personagens homenageados em pedra e bronze na capital naquele período, concluiu que a “ritualização que envolvia e promovia a escultura pública servia para exibir a diversidade de linhagens políticas que marcavam a sociedade nacional[9]
É importante lembrar Walter Benjamin quando assegura que todo documento de cultura é, na realidade, um documento de barbárie. Ou seja, no ano anterior, em 1871, uma nova lei abolicionista apresentada em maio só foi aprovada em 28 de setembro determinando a liberdade dos filhos e filhas de escravizados. Contudo, conforme a Agência Senado revela
Os bebês, na realidade, não seriam livres de verdade. Grosso modo, a Lei do Ventre Livre estabeleceu que os filhos permaneceriam junto da mãe escravizada, vivendo no cativeiro, até os 8 anos de idade. Dos 8 aos 21 anos, continuariam na propriedade do senhor ou, se ele não os quisesse mais, ficariam sob a tutela do Estado. O poder público, contudo, não se preparou para cuidar das crianças que completassem 8 anos. Elas, então, permaneceram nas fazendas, trabalhando como se fossem escravizadas. Na prática, a liberdade prevista na Lei do Ventre Livre só viria mesmo na idade adulta, aos 21 anos. O trabalho que os filhos das escravizadas prestariam ao longo dos anos gratuitamente ao fazendeiro serviria de compensação pelos gastos com a criação (teto, comida, roupa etc.) e também de indenização pela perda compulsória da “propriedade[10]
Naquele momento, o Brasil contava com quase 10 milhões de habitantes, sendo 51,6% homens e 48,4% mulheres, enquanto cerca de 15% da população era escrava. Ora, tendo em vista o lento, mas persistente avanço do abolicionismo legal, logo em 1881 houve a aprovação de uma nova lei eleitoral que aumentava o critério de renda para o exercício do sufrágio, além de restringi-lo às pessoas que comprovasse saber ler e escrever. Visto de outro ângulo, um novo arranjo legal e institucional tinha em vista reforçar a reserva de poder das elites no quadro geral de desagregação do escravismo, algo como uma espécie de sistema de cotas para a manutenção dos privilégios da branquitude, conforme assinala Cida Bento[11].
1922 E A BUSCA PELO SENTIDO DA MODERNIDADE
O Brasil de 1922 tinha cerca de 80% dos seus 30 milhões de habitantes vivendo nas zonas rurais. Desse total, somente 3,5%, ou seja, algo em torno de 800 mil homens eram de fato eleitores. Como se sabe, em fevereiro, houve a realização da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo e cujo centenário tem sido bastante polêmico desde o começo de 2022 – tome-se como exemplo a forte atuação do jornalista e pesquisador Ruy Castro nas grandes mídias contestando o cânone paulista[12].
Mas, além disso, o país assistiu à emergência do chamado “tenentismo”, à criação do Partido Comunista, aos desafios de refundação da urbanização da capital carioca, além dos impasses em torno da manutenção da agro exportação e os desafios impostos pelo cenário internacional à industrialização do país, conforme analisado por Jorge Caldeira em seu clássico “História da Riqueza no Brasil”. É nesse cenário que foi montada a Exposição Universal do Rio de Janeiro entre setembro de 1922 e julho de 1923.
No bojo da remodelação da capital carioca, foram construídos 2,5 mil metros quadrados de pavilhões para abrigar cerca de 10 mil expositores, inclusive 15 pavilhões estrangeiros[13] e chegou a receber mais de 3 milhões de visitantes. Imbuído do espírito positivista que encarava o avanço tecnológico, científico e industrial como expressão da marcha para o progresso, a Exposição deveria servir como uma vitrine que posicionaria o Brasil no rol das nações modernas naquele cenário pós-guerra. De acordo com a pesquisadora Marly Mota,
da inauguração da exposição em 7 de setembro de 1922 até seu enceramento em 24 de julho de 1923, a Exposição Nacional exibiu 25 seções relacionadas a educação e ensino; letras, ciências e artes; mecânica; eletricidade; engenharia civil e transporte; agricultura; horticultura e arboricultura; florestas e colheitas; indústria alimentar; indústrias extrativas e metalurgia; decoração e mobiliário; fios, tecidos e vestuários; indústria química; indústrias diversas; economia social; higiene e assistência; ensino prático, instituições econômicas e trabalho manual da mulher; comércio; economia geral; estatística; forças de terra e esportes. Em paralelo, foram oferecidas atividades como exibição de filmes e conferências (...) Apesar dos pavilhões referentes às riquezas naturais do Brasil, havia também a preocupação de expor como era possível explorar todos esses recursos em indústrias e novas tecnologias. Por outro lado, para além da propaganda voltada ao público externo, um objetivo fundamental da Exposição foi oferecer uma “aula de civismo” ao cidadão brasileiro, numa tentativa de apaziguar a crise política enfrentada pelo país naquela época[14]
São Paulo, que à época apresentava a si mesmo como a “máquina a vapor” que carregava os “vagões vazios” da nação, não ficou para trás. Sob os cuidados de Affonso de Taunay, a capital industrial do país entrou nas disputas simbólicas, preparou o Museu Paulista para a celebração do centenário inspirado naquela mesma “febre dos monumentos” e reivindicou seu quinhão histórico através da construção do Monumento à Independência do Brasil, também conhecido como Altar da Pátria, além da elaboração de uma bibliografia intitulada Grandes vultos da Independência brasileira
Versaria este livro sobre os grandes próceres do movimento a que deveu o Brasil a sua entrada para o rol das nações. Daí a ideia da organização do presente volume de que tive a honra de ser incumbido. Aproveitando o ensejo da inauguração, no Museu Paulista, de uma galeria de vinte e nove retratos de personagens da Independência, devidos à bela arte dos Srs. Professores Oscar Pereira da Silva e D. Failutti, imaginei fazer reproduzir a cores estes quadros como ilustração às biografias que resolvera escrever atendendo à honrosa incumbência dos grandes e patrióticos editores de S. Paulo[15]
Faz-se necessário dizer o óbvio: dentre os 31 “grandes próceres”, constam somente três mulheres: a arquiduquesa Leopoldina (1797-1826), a abadessa baiana Joana Angélica de Jesus (1761-1822) e a combatente Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853) que, em 1996, se tornou patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. Ressalta-se que o centenário da Independência do Brasil foi ofuscado pela atração exercida pela Semana de Arte Moderna, conforme atesta o projeto Ciclo 22 da Universidade de São Paulo, que se dedica à reflexão sobre as efemérides em torno dessa data.
A entrevista realizada com a historiadora Michelli Monteiro revelou, por exemplo, que, apesar de o Monumento à Independência ter sido mau recebido por parte da intelectualidade da época, os eventos do centenário tiveram muita repercussão social
Não houve só um esquecimento do monumento e do seu artista, mas também um menosprezo, talvez pela crítica do Mário de Andrade. Ele disse que [o monumento] era uma ‘porcelana de Sévres’, tirou sarro do monumento como uma coisa ultrapassada. Mas é preciso lembrar que em 22 Mário de Andrade não era o Mário de Andrade que conhecemos hoje”, pontuou a historiadora, se referindo à importância e relevância que o autor ganhou após a Semana de Arte Moderna (...) A construção do monumento foi um evento bem marcante. Lendo os jornais da época eu via muita participação da população, por exemplo, na escolha do artista que iria construir o monumento. Hoje se você fala em 1922, a maioria da população vai lembrar da Semana de Arte Moderna, ninguém vai lembrar do centenário da Independência, mas foi um evento muito grandioso para a época[16]
1972: CONSENSOS E CONSENTIMENTO A PARTIR DO SESQUICENTENÁRIO
Das três efemérides aqui desenvolvidas, o sesquicentenário é o que tem recebido maior atenção da historiografia e, particularmente, o estudo de Janaína Martins Cordeiro serve de referência para o presente momento. Intitulada Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do Sesquicentenário da Independência entre o consenso e o consentimento (1972)[17], a sua tese foi orientada pelo prof. Daniel Araão Reis e reflete os novos aportes temáticos, assim como as novas abordagens a respeito das relações entre Estado e sociedade durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985).
Dividida em nove capítulos, a sua pesquisa pretende provar como os eventos do sesquicentenário construíram consensos sociais que permitem compreender o período ditatorial como uma Ditadura Civil-Militar, isto é, um regime autoritário cujos princípios arbitrários não eram somente veiculados de maneira vertical do Estado sobre a sociedade, mas sim eram demandados e consentidos, mesmo que de maneira difusa, pelo conjunto da sociedade civil.
Traduzindo: a realização dos Encontros Cívicos Nacionais em 21 de abril, a intensa preparação do traslado dos restos mortais de Pedro I pelo país entre 22 de abril e 7 de setembro e a realização da Taça Independência entre junho e julho foram eventos aguardados e desejados por milhares de pessoas país afora que, apesar da legalização do estado de exceção e da consequente violação dos direitos humanos, aderiram ao ufanismo embaladas pela euforia do crescimento econômico que girava na casa dos dois dígitos em virtude do chamado “Milagre econômico”.
Em virtude da qualidade literária de Cordeiro, creio que seja proveitoso abusar aqui das citações a respeito das ambivalências e da magnitude de cada um desses três eventos que elevaram as expectativas da sociedade brasileira durante seis meses, de abril a setembro de 1972. Sobre a inumação dos restos mortais de Pedro I, Cordeiro destaca que a escolha do Imperador não foi feita sem críticas por parte da imprensa, afinal ela reforçava os vínculos com a ex-metrópole portuguesa que naquele momento vivia os estertores do regime salazarista.
A data escolhida para o desembarque de Pedro I foi o 22 de abril, o que reforçava o caráter elitista da celebração ao acentuar uma continuidade entre metrópole e colônia e, por extensão, o elogio da perspectiva colonizadora e a exclusão das matrizes africanas e indígenas. Após rodar praticamente o país inteiro, os restos mortais do imperador foram velados na capital paulista ao longo de três dias, sendo a urna exposta à visitação pública até o dia 6. De acordo com a autora,
Nos dois primeiros dias, passaram por ali cerca de 15 mil pessoas. Em geral, os visitantes, com exceção de algumas crianças mais travessas, mostravam-se compungidas, com o ar grave, solene e, ao mesmo tempo, curiosos para ver o herói nacional: “parecia que todos os visitantes estavam deslumbrados com o que viam, pois mostravam-se parados e com os olhares fixos na grande urna mortuária que estava sob guarda especial”, dizia a reportagem da época.[18]
Por sua vez, a data escolhida para os Encontros Cívicos Nacionais amalgamou, no mínimo, duas memórias: aquela do Imperador cujos restos mortais tinham acabado de atracar no país e a de Tiradentes, cujo símbolo era disputado tanto pelo governo ditatorial (ele havia sido transformado em Patrono da Polícia Civil por Dutra pelo Decreto-Lei Nº 9.208, de 29 de abril de 1946 e em Patrono da Nação Brasileira pela Lei 4.897 por Castelo Branco) como pelas esquerdas, a exemplo do Movimento Revolucionário Tiradentes, a peça teatral Arena conta Tiradentes (1967), de Boal e Guarnieri e o filme Os Inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade.
Em resumo, os Encontros consistiam numa grande mobilização “emocional e informativa” que contou com a participação de artistas como Roberto Carlos, Marília, Pêra, Tônia Carrero, Tarcísio Meira, Pelé, Aguinaldo Timóteo, Zé Kéti e Elis Regina a fim de incutir na população, sobretudo a jovem, a participação em um “acontecimento inédito no mundo”: às 18h30 do dia 21 de abril, simultaneamente,
em todo o país, será ouvido o discurso do presidente da Garrastazu Médici, seguindo-se os atos do hasteamento da bandeira, ao som do Hino Nacional, cantado pelo povo reunido numa grande concentração, em lugar público, a céu aberto[19]
A adesão social e os impactos do evento podem ser sentidos, por exemplo, através das páginas do Diário de Sorocaba cuja publicação versou sobre a “comunhão de pensamento” que colocou “lado a lado, militares, estudantes e pessoas do povo” para ouvirem “em silêncio reverente, a palavra do presidente da República”. O jornal seguiu
O Encontro Cívico Nacional, motivado de maneira exuberante em todos os quadrantes da Pátria, veio a mostrar uma nova realidade no Brasil. Veio mostrar que, hoje, o Brasil vê uma era em que, o maior interesse da grandeza da Pátria, o interesse de que, efetivamente, no albor do ano 2000, sejamos a grande nação do desenvolvimento pleno, livre e independente em todos os sentidos. A Revolução de 31 de março é a construtora dessa nova nacionalidade, é a construtora desse novo país e, justamente por isso é que se denomina, a revolução, como sendo redentora. Efetivamente, essa revolução é redentora, é libertadora e sua ação continuará insistindo na performance de progresso.[20]
Não seria demais dizer que essa “comunhão de pensamento” endossava o mito da democracia racial veiculado pela Ditadura Civil-Militar. As pesquisas de Piza e Rosemberg (1999) atestam que o Censo Demográfico de 1970 não coletou a cor e nem apresentou os motivos. O outro lado da moeda dessa ignorância da dimensão étnico-racial estava nas letras da composição da Marcha do Sesquicentenário que
Marco extraordinário
Sesquicentenário da Independência
Potência de amor e paz
Esse Brasil faz coisas
Que ninguém imagina que faz
É dom Pedro I
É dom Pedro do Grito
Esse grito de glória
Que a cor da história à vitória nos traz[21]
Contudo, conforme vimos na abertura dessa apresentação, o Brasil atravessou o “albor do ano 2000” celebrando uma memória colonialista, extrativista e eurocêntrica durante as efemérides dos 500 anos. Quanto ao almejado “desenvolvimento livre e pleno”, ele deve ser visto com suspeita, sobretudo quando um presidente que se diz nacionalista bate continência a John Bolton[22], o assessor de Segurança Nacional do ex-presidente Donald Trump, em um gesto inédito de subserviência ideológica.
Por fim, quanto às aspirações redentoras da chamada “revolução de 31 de março”, faz-se necessário trazer à tona as palavras do próprio Ernesto Geisel quando em entrevista ao jornalista Elio Gaspari em 1981 reafirmou
O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, bem a subversão e bem a corrupção acabaram. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução.[23]
CONCLUSÃO
Como se pode notar, o sete de setembro foi uma efeméride que ganhou contornos cada vez mais robustos ao longo da vida republicana brasileira. Em seu aniversário de 50 anos ela recebeu pouca atenção das elites, como atestou Malerba, que, de certa maneira, estavam mais preocupadas em gerenciar as novas facções políticas que ameaçavam a ordem imperial.
Por sua vez, o centenário da Independência provocou grande mobilização da sociedade civil, assim como recebeu mais atenção da pesquisa histórica quando comparada com o aniversário anterior. Apesar de a sua memória ter sido ofuscada pelas ressonâncias da Semana de Arte Moderna, o aniversário do centenário demonstrou uma opção de continuidade pelo nome de Bonifácio de Andrada, além de sinalizar para as disputas simbólicas entre São Paulo e Rio de Janeiro para se obter o protagonismo das celebrações. Não se deve também deixar de lado a emergência dos esforços de monumentalização regionais, tais como a evocação da Batalha do Guararapes (PE), as guerras na Bahia, a dimensão pública de Tiradentes (MG) e a heroicização da Farroupilha (RS).
Por fim, através da pesquisa de Janaína Cordeiro, nota-se tanto a renovação historiográfica dos temas ligados à Ditadura Civil-Militar como as possibilidades de compreensão de como os eventos do sesquicentenário almejavam uma magnitude sem precedentes tendo em vista a sobreposição das imagens do Imperador Pedro I à imagem de Garrastazu Médici. Se o primeiro foi o responsável pela independência política, o segundo seria então o responsável pela independência econômica pretensamente trazida pelo chamado “Milagre econômico”.
Em comum, todas essas efemérides estavam comprometidas com uma visão edulcorada e legalista da história do Brasil: valorizam-se os documentos oficiais, os discursos dos homens brancos das elites e, quando acionado, o povo atua como um ornamento de ações institucionais que celebram o caldeamento benevolente de raças, discrimina as miradas dos povos originários e compreende a natureza como uma reserva de energia a serviço de um suposto progresso histórico.
[1] Portugal aceita emprestar coração de D. Pedro I para comemoração dos 200 anos da independência brasileira. Reportagem do G1 disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/07/17/portugal-aceita-emprestar-coracao-de-d-pedro-i-para-comemoracao-dos-200-anos-da-independencia-brasileira.ghtmlAcessado em 18/07/2022 [2] ARRUDA, J. Comemorar, celebrar, refletir: o trágico V centenário do descobrimento do Brasil. Disponível em: https://www.abphe.org.br/arquivos/jose-jobson-de-andrade-arruda.pdf Acessado em 18/07/2022 [3] HERSCHMANN, M.; PEREIRA, C. E la nave va... As celebrações dos 500 anos do Brasil – afirmações e disputas no espaço simbólico. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/download/2121/1260/0 Acessado em 18/07/2022 [4] NETO, M. A hierarquização simbólica do Brasil na Copa do Mundo. Revista Sociedade e Estado – Volume 32, Número 1, janeiro/abril 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/cgMwBsfxBp8mPFBVsGNxHjv/?lang=pt&format=pdf Acessado em 18/07/2022 [5] Como foram os 1000 dias de governo Bolsonaro - Reportagem da UOL. Disponível em: https://economia.uol.com.br/stories/como-foram-os-1000-dias-do-governo-bolsonaro-na-economia/ Acessado em 18/07/2022 [6] CAMPOS, A. Negros tem 2,6 vezes mais chances de ser assassinado no Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-08/risco-de-negro-ser-assassinado-e-26-vezes-superior Acessado em 18/07/2022 [7] MOLITERNO, D. Do início ao fim: o meio ambiente no governo Bolsonaro. Disponível em: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2020/11/do-inicio-ao-fim-o-meio-ambiente-no-governo-bolsonaro/ Acessado em 18/07/2022 [8] KRAAY, H.; MALERBA, J. Festejar e repensar a Independência: um balanço. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/download/8768/6152/ Acessado em 18/07/2022 [9] SCARELLI, R. “Continua a febre dos monumentos”: a estatuomania na imprensa do Rio de Janeiro (décadas de 1880 a 1930). Disponível em: https://www.scielo.br/j/anaismp/a/rMhYn78RkkXK48wF8czrqqw/ Acessado em 18/07/2022 [10] WESTIN, R. Fazendeiros tentaram impedir a aprovação da Lei do Ventre Livre. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/fazendeiros-tentaram-impedir-aprovacao-da-lei-do-ventre-livre#:~:text=Neste%20m%C3%AAs%2C%20a%20Lei%20do,nenhum%20escravizado%20em%20solo%20brasileiro. Acessado em 18/07/2022 [11] VER BENTO, CIDA. O pacto da branquitude. SP: Cia das Letras, 2022 [12] Entrevista com Ruy Castro no Roda Viva em 07 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P0DRCzgoccQAcessado em 18/07/2022 [13] SILVEIRA, E. Como era o Brasil do 1º centenário da Independência, há 100 anos. Reportagem da BBC de 11/02/2022. https://www.bbc.com/portuguese/geral-60287458 Acessado em 18/07/2022 [14] Rio de Janeiro, 1922: um “bazar de maravilhas” – Brasiliana – Revista de Divulgação Científica da FIOCRUZ. Disponível em: http://www.fiocruz.br/brasiliana/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=723&sid=15 Acessado em 18/07/2022 [15] TAUNAY, A. Grandes vultos da Independência brasileira. SP: Cia Melhoramentos, 1922.Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/6960/1/45000009128_Output.o.pdf Acessado em 18/07/2022 [16] SANTANA, C. Semana de 22 ofuscou importância do Centenário da Independência. Disponível em: https://jornal.usp.br/universidade/semana-de-22-ofuscou-importancia-do-centenario-da-independencia/ Acessado em 18/07/2022 [17] CORDEIRO, J. Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do Sesquicentenário da Independência entre consenso e consentimento (1972). Tese defendida no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense em 2012. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/16166/Tese-janaina-martins-cordeiro.pdf?sequence=1 Acessado em 18/07/2022 [18] CORDEIRO, J. idem, p. 52 [19] Idem, p. 110 [20] Idem, p. 127 [21] Idem, p. 114 [22] O filme Sinfonia de um homem comum, realizado por José Joffily em 2012 adensa este caso a partir das pressões que John Bolton exerceu para que o diplomata brasileiro José Maurício Bustani abandonasse a direção da OPAQ. [23] GASPARI, E. A ditadura envergonhada – vol. 01. RJ: Intrínseca, 2002, p. 140
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