Testemunho e memória histórica em "Uma noite de 12 anos", de Álvaro Brechner (2018)
- Fábio Monteiro
- 1 de mar. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 7 de abr. de 2024
RESUMO: O presente texto foi encomendado pelo portal Politize! para a ocasião de lançamento do filme de Brechner, em 2018. O texto segue aqui de maneira integral.
“Sem nomes e sem mágoas”. Foi este pensamento que os escritores Mauricio Rosencof e Eleuterio Huidobro se dedicaram a escrever as suas “Memórias do Calabouço”. Juntos com José “Pepe” Mujica, eles passaram doze anos encarcerados com outros sete colegas. Com uma dramaturgia bem-sucedida na humanização desta experiência, o filme “Uma noite de doze anos”, de Álvaro Brechner, reconstitui esta história. Que tal conhecê-la melhor?
A ERA DOS EXTREMOS
Para se conhecer melhor a história do filme escrito e dirigido por Álvaro Brechner, vale a pena retomar um pouco do que foi o século XX. Ou melhor, da época que o historiador Eric Hobsbawm chamou de a “Era dos Extremos”, o curto e intenso “século de setenta e cinco anos”.
De acordo com Hobsbawm, o século XX pode ser compreendido a partir dos eventos ocorridos entre a 1º Guerra Mundial e a chamada Queda do Muro de Berlim, em 1989. Pois, quando lido dentre destas referências cronológicas, pode-se notar como este breve século sobrepôs às fronteiras nacionais e culturais as questões ideológicas. Isto porque, se em escala europeia, a 1º Guerra Mundial deu início às tensões entre o Nazi-fascismo de um lado e o Liberalismo e o Comunismo de outro, foi a 2º Guerra Mundial que, por sua vez, internacionalizou as fronteiras entre os capitalistas e os comunistas, e deu origem à chamada Guerra Fria.
Um dos arquitetos dessa Guerra Fria foi o braço direito de John Kennedy, o seu Secretário de Defesa Robert McNamara que em entrevistas chegou a recordar daqueles tempos, na realidade, como uma “guerra quente”. Desde o seu alto escalão, os EUA vigiaram e moderaram diversos conflitos internacionais, por exemplo, a tensa Crise dos Mísseis, em 1961, e o duradouro e controverso envolvimento na Guerra do Vietnã.
Para se ter uma ideia da temperatura daquele momento, em outubro de 1961, a Crise dos Mísseis levou os presidentes dos EUA e da URSS a se falarem pessoalmente por telefone a fim de encontrarem uma saída para o desarmamento da pequena e revolucionária Cuba. Apenas dois anos após a sua revolução nacionalista, a ilha caribenha continha mais de cento e quarenta mísseis soviéticos de médio e longo alcance. Os extremos estavam postos: as ideologias norteavam não somente as relações internacionais, mas também as interpessoais em torno da chamada lógica “amigo-inimigo”: algo como ou se está conosco ou se está contra nós.
A GUERRA FRIA NA AMÉRICA LATINA
O filme de Brechner opta por um excelente recurso narrativo para nos situar neste clima de guerra: a câmera perfaz uma panorâmica de 360º sobre seu próprio eixo para registrar o encarceramento de pessoas. Dito de outra forma, as cenas iniciais são feitas a partir do interior de um panóptico, uma instituição tipicamente moderna que sintetiza o que Foucault chamou de sociedade disciplinar.
Esta categorização se refere ao desenvolvimento e consolidação das sociedade urbanas e industriais ocidentais marcadas por formas de coerção e domesticação de multidões. Ou seja, ao longo dos séculos XVIII ao XX o panóptico – “o olho que tudo vê” – conseguiu dissociar o ver do ser-visto e assim convenceu e persuadiu as pessoas a determinados modos e comportamentos. Dessa maneira, aos Estados-Nação não bastava mais apenas legislar sobre a política e a economia, mas também sobre a subjetivação dos corpos individuais.
E o filme consegue humanizar não somente os indivíduos em encarceramento, mas também a mirada que nós, espectadores, lançamos sobre eles. Afinal, a focalização da narrativa é operada de modo a provocar uma imersão no sistema repressivo da ditadura civil-militar uruguaia. Aliás, diga-se de passagem: poderia ser qualquer ditadura latino-americana, pois as referências territoriais, físicas ou cronológicas são diluídas em prol das narrativas subjetivas das personagens do filme.
O filme Uma Noite de 12 Anos opta por um excelente recurso narrativo para nos situar neste clima de guerra: a câmera realiza uma panorâmica de 360º sobre seu próprio eixo para registrar o encarceramento de pessoas e acompanhar a resistência dos prisioneiros. Dito de outra forma, as cenas iniciais são feitas de maneira a caráter panóptico do sistema carcerário. Essa dimensão panóptica das instituições modernas foi problematizada por Michel Foucault. De acordo com o filósofo, escolas, quartéis, hospitais, indústrias e prisões deixaram um legado comum: a tarefa de disciplinar hábitos, costumes e comportamentos através, por exemplo, de sirenes escolares, exercícios físicos, apitos de fábricas, iluminações semafóricas, dentre outros dispositivos.
E estas personagens são Tupamaros, integrantes de um movimento político que surgiu no Uruguai quatro anos após a Revolução Cubana. E esta relação é importante para se compreender o filme, pois inspirados não somente pelos resultados, mas principalmente pelas estratégias dos cubanos, o Movimento de Libertação Nacional Tupamaru (MLNT) também apostava na luta armada como uma forma de resistência social e de transformação política.
O nome do movimento político era uma homenagem ao líder da maior revolta anticolonial de toda a América Hispânica, Túpac Amaru. Nascido no Peru com o nome de José Gabriel Condorcanqui, ele adotou o nome do último imperador Inca e encabeçou cerca de cem mil indígenas contra os domínios coloniais. Assim, a atualização deste imaginário anticolonialista nos anos 1960 tinha um propósito: a proposta de conscientização tanto da população urbana quanto a rural pela defesa da autonomia nacional do Uruguai diante das ingerências militares e financeiras estadunidenses.
Dessa maneira, os Tupamaros praticavam assaltos de cargas, de bancos e de empresas tendo em vista seja a distribuição dos bens aos menos favorecidos, seja a mobilização da luta armada. Para alguns, o ponto alto da organização foi o sequestro do chefe da Segurança Pública uruguaia Dan Mitrione, em julho de 1970. Nascido na Itália e naturalizado norte-americano, Mitrione era um agente do FBI e ficou conhecido nos meios diplomáticos latino-americanos como um infiltrado difusor de técnicas de tortura, algo que ele chegava a considerar uma ciência.
Em troca da libertação de Mitrione, os Tupamaros exigiam a libertação de 150 prisioneiros políticos. Diante da negativa de negociação por parte do Governo Pacheco Areco (1967-1972), o corpo de Mitrione foi encontrado morto dentro de um carro. A repressão foi imediata e não somente sobre os agentes do MLNT, pois houve perseguições políticas também a artistas e intelectuais cujos ideais estivessem fossem considerados revolucionários. Muitas dessas pessoas foram parar na oficina Automotores Orletti, um centro de detenção clandestino sediado no bairro Florida, em Buenos Aires, Argentina.
Estas conexões internacionais eram expressões da Doutrina de Segurança Nacional, uma doutrina diplomática induzida pelos EUA aos governos latino-americanos após a Revolução Cubana. Sintetizada na Operação Condor, ela se pautava na lógica de que, a partir de então, o inimigo não estava mais somente no estrangeiro, mas sim “dentro de casa”. Seria então necessária uma articulação internacional latino-americana que visasse o combate ao que se chamava o “inimigo interno” e, sendo assim, as distinções entre sociedade civil e campo militar tendiam a desaparecer.
Neste cenário, em março de 1972, Luis María Bordaberry foi democraticamente eleito presidente do Uruguai sob grande tensão social. De um lado, os Tupamaros eram capazes de grande mobilização social a partir do campo, de outro havia a Convenção Nacional dos Trabalhadores, a CNT, capaz de promover greves gerais. Porém, no ano seguinte de sua eleição, uma junta militar amparou o governo de Bordaberry para fechar o Congresso e colocar os partidos políticos na ilegalidade, o que deu início formal a primeira e única ditadura da história do Uruguai.
A NOITE DE DOZE ANOS
Nove Tupamaros foram encarcerados, porém o filme de Brechner se concentra em três deles: José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro. Idealistas, estes três jovens mais tardes se tornaram, respectivamente, presidente do Uruguai, jornalista e dramaturgo e jornalista e escritor. O passado destas personagens e as causas do encarceramento – que desenvolvemos ao longo deste artigo – nos são dados ao longo do filme.
Desde as cenas iniciais, a geografia da narrativa é bem delineada ao longo de toda a trama fílmica: a trinca de amigos nos é apresentada sobrevivendo nos subsolos, no subterráneo. Em contrapartida, as cidades com suas regras, ordens e instituições públicas, isto é, a chamada civilização está ao nível daquilo que se considera humano. Ou seja, com isto o filme elabora com eficiência a ideia de ditadura, no sentido amplo do termo: é um regime de exceção, uma forma de governo que, além de legislar sobre a diplomacia, a política e o mercado também busca dizer quem deve viver e quem deve morrer.
O filme de Brechner recusa soluções fáceis, tal como abusar das cenas de tortura como uma forma de sensibilização diante das crueldades. Ao contrário destes artifícios comuns no cinema latino-americano, o filme aposta numa edição ágil que busca expressar a docilização dos corpos através de gestos e sinais sutis e a confusão mental e os momentos de delírio através justaposições de imagens do passado das personagens.
Vale chamar a atenção pelo seu apelo poético, isto é, para o fato de que os militantes nos são dados antes de tudo como indivíduos capazes de reelaborar formas de comunicação no isolamento do cárcere, além de mostrarem solícitos às interações com os militares que procuram neles auxílio literário para uma carta amorosa, por xemplo. Digno dos prêmios de recebeu, o filme se impõe dentro da cinematografia internacional, pois além de promover a humanidade do trio de protagonistas, ele tem êxito na sensibilização dos espectadores diante de um passado que, apesar da brutalidade, ainda quer permanecer presente dentre alguns setores sociais.
PUBLICAÇÃO ORIGINAL NO POLITIZE!
BIBLIOGRAFIA:
AYERBE, Luis Fernando. Estados Unidos e América Latina – a construção da hegemonia. SP: Unesp, 2002.
ROSENCOF, M.; FERNANDEZ, H. Memorias del Calabozo. Espanha: Txalaparta, 1993
TANUS, Salma. Foucault simplesmente. SP: Loyola, 2004
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