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O Salvador Allende de Patricio Guzmán - entre a memória e o testemunho

  • Foto do escritor: Fábio Monteiro
    Fábio Monteiro
  • 20 de jul. de 2022
  • 10 min de leitura

RESUMO: O presente artigo foi elaborado em 2016 como um ensaio para a minha dissertação de mestrado intitulada "A história de Salvador Allende no cinema de Patricio Guzmán", publicada pela Ed. Paco em 2018. Ele propõe uma breve análise do filme "Salvador Allende" (2003) e foi apresentado no VI Encuentro de Investigación sobre Cine chileno y latinoamericano na Cineteca do Chile.




Em setembro de 2003, no seio das efemérides em torno dos trinta anos do golpe militar, o presidente chileno Ricardo Lagos instalou o Informe de la Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura cujo prólogo afirmava

O cenário social do Informe são as vidas quebradas, as famílias destruídas, as perspectivas pessoais corrompidas. Tudo isto esteve coberto durante muito tempo por um espesso e insano silêncio. (…) A experiência da prisão política e da tortura representou uma ruptura vital que cruzou todas as dimensões da existência das vítimas e suas vidas.

Sob o comando do monsenhor Sergio Valech, o Informe de 2003 se tornou uma das mais significativas intervenções públicas nas políticas de memória no contexto latino-americano, pois em sua abrangência reconheceu a prática sistemática da tortura, a violação oficial dos direitos humanos, deu amparo oficial e legal a mais de trinta mil sobreviventes e, além disso, propôs medidas de reparação para as vítimas da ditadura.

Naquele mesmo ano, Patricio Guzmán lançou a sua cinebiografia do ex-presidente chileno, “Salvador Allende”. Pode-se dizer que, com ela, Guzmán fechou aquela que ficou conhecida como sendo a sua “trilogia da memória” (RICCIARELLI, 2011, p. 14) que havia sido iniciada em 1997 com “Chile, memória obstinada” e teve seu desdobramento com “O caso Pinochet”, de 2001. Consideramos que esses filmes, cada um ao seu modo, apresentaram-se como vozes de resistência política aos esforços de construção de uma memória consensual promovidos pelos governos da Concertación durante os anos noventa. (BLANES, 2008, p. 260). Assim, a análise a seguir pressupõe que eles sejam a apresentação, o desenvolvimento e a conclusão de um mesmo argumento: a luta contra o apagamento de determinadas demandas históricas de justiça social.

Dentre os fatores que nos levam a considerar o conjunto desses três filmes como uma unidade dramática, está a recorrência de algumas estratégias narrativas que, em nossa perspectiva, visam endossar o caráter testemunhal do realizador nesses filmes. Por exemplo, o uso de fotografias ou filmagens de arquivos, a valorização das negociações entre o realizador e os depoentes nas entrevistas, e a forte presença afetiva da narração em primeira pessoa do realizador em voz over, sendo esse um fator fundamental na construção da coerência argumentativa nesses três filmes. É ela, a presença afetiva da voz over, quem dá coerência ao valor testemunhal dos filmes, mas assumindo distintas posturas com o passar dos anos.

Seguimos, então, as considerações de Nichols (2012, p. 73), que afirma que todo documentário tem uma voz própria, ou seja, ela envolve a lógica informativa que organiza as estratégias narrativas e orienta seus argumentos em busca da adesão do espectador. Isto é, a voz do filme compreende como o realizador engaja o espectador em sua perspectiva singular sobre determinados eventos históricos. Vejamos como isso se deu na ‘trilogia da memória’ de Guzmán.

Em 1997, o realizador retornou ao Chile a fim de estrear a sua primeira trilogia, A Batalha do Chile”, um filme que, como a sua própria vida, estava exilado desde o golpe militar. Tocado pela emoção de retorno, ele acolheu as sugestões de seu produtor e realizou entrevistas com pessoas que viveram e participaram tanto do Governo Allende quanto de seus próprios filmes. As entrevistas foram mediadas por fotografias e cenas de “A Batalha...”, importantes dispositivos para as pessoas recordarem os eventos em questão.

“Chile, memória obstinada” também traz os registros dos debates suscitados entre os jovens com a exibição de “A Batalha...”. Enquanto uma parcela dos jovens reclama da própria ignorância em relação ao passado recente de seu país, não são poucos aqueles que aprovam o golpe militar em nome do combate ao que chamam de “guerra civil” e do “pioneirismo de Pinochet no combate mundial ao comunismo”. O filme, então, aponta para as tensões inerentes à conciliação social promovida pelo Estado. De certa forma, o filme suscita as diferenças apontadas por Gagnebin (2006, p. 101) entre aquele esquecer natural e necessário à vida e um esquecer político e duvidoso, que é sinônimo de “um saber, mas não querer saber, um denegar, recalcar”; isto é, um esquecimento cínico que parece emergir da vontade de ignorar o constante peso de culpa por um passado violento.

Um ponto alto do filme são as cenas da visita de Patricio Guzmán ao Estádio Nacional, onde esteve encarcerado por semanas e fez amizade com Alvaro, que recorda em voz over como conheceu Guzmán

O Estádio era um lugar sinistro, eu tinha um sentimento fenomenal de medo (...) Um dia eu estava atendendo um paciente, e o próximo era você. (...) Eu me detive, eu não me lembro se te abracei ou te tomei pelas mãos. [Guzmán pergunta] Eu estava muito assustado? [Alvaro continua] Não, eu me lembro que você me disse que tinha assistido a simulações de fuzilamento (...) E você me pediu que eu fosse até sua casa para passar tranquilidade à sua mulher.

Esse é um momento de inflexão na cinematografia de Guzmán, pois a sua visita ao Estádio Nacional, um dos campos concentracionários da ditadura militar, atribui ao realizador as qualidades de alguém que, de fato, viu e viveu, o tema do filme. Ou melhor, a partir desse momento, o realizador assume o papel de protagonista da história, assumindo-se como mais um dentre os sobreviventes que participam do filme. Ele assume o estatuto de um testemunho com forte apelo visual, que também comprova e evidencia a sua presença naquele cenário de violência instalado pelo regime de exceção pinochetista (McSHERRY, 2009, p.53): é assim que a voz do filme o inscreve dentro de seu próprio universo diegético. Nesse sentido, dialogamos com Valenzuela (2006, p.09), para quem “Chile, memória obstinada” é um envolvente “giro performativo autorreflexivo” que, através de um tenso jogo de temporalidades históricas, procura ser um exercício consciente de reafirmação de pessoas que lutaram por justiça social e que, portanto, combatem o esquecimento “que faz de conta que não sabe”.

A outra película, por sua vez, intitulada “O caso Pinochet” foi motivada por razões diversas. Ao planejar o roteiro e o argumento do filme, Guzmán já tinha em vista que ele rechaçava Augusto Pinochet como um personagem e o considerava a encarnação da traição, da repressão e da morte (RICCIARELLI, 2011, p. 67).

Em linhas gerais, o filme mantém a sobriedade e opta por justapor aos blocos narrativos dos sobreviventes que sofreram as violações dos direitos humanos, os blocos narrativos de jornalistas e manifestantes que acompanharam o cotidiano do caso. A articulação entre eles é feita por closes de um jogo de xadrez que surgem dentre os comentários dos advogados e juristas, e sugerem ilustrar a racionalidade fria e calculista do exercício da jurisprudência. Algumas estratégias narrativas ainda podem ser encontradas aqui: o recurso às fotografias como dispositivos de rememoração, as entrevistas participativas e a presença da narração em primeira pessoa em voz over. Mas antes, de saída, o filme impõe ao espectador um exercício delicado: o reconhecimento da prática sistemática adotada pela ditadura de ocultamento de cadáveres. Começa-se no deserto, uma paisagem que tem um forte apelo poético, pois o ‘lá’ e o ‘aqui’ se confundem: é como se já não fosse mais possível discernir entre o ontem e o hoje, perdendo-se as coordenadas de tempo e espaço.

Na cena subsequente o foco é Joan Garcés, ex-secretário pessoal de Allende, que analisa um conjunto de fotografias com uma lupa, um instrumento de minúcia, enquanto cumpre o papel histórico que lhe foi atribuído pelo ex-presidente: sobreviver para relatar com detalhes o golpe militar. Ato contínuo, aos dez minutos do filme, um ponto crucial impõe uma inflexão no engajamento de Guzmán sobre o tema: são apresentados os arquivos que “catalogaram as pessoas torturadas, desaparecidas ou executadas” que, continua Guzmán em voz over, “foi organizado pela Igreja Católica e outras organizações mantiveram esse enorme arquivo da memória e do terror. Esse organismo se chamou Vicaría de la Solidariedad, e teve uma equipe de advogados que lutou incansavelmente pelos direitos humanos”. Eis a tônica da voz do filme: rastrear, revelar, trazer à tona, fazer emergir corpos, biografias, famílias, narrativas, isto é, as ‘verdades’ que foram vítimas de um apagamento institucional.

O filme enfatiza que essas ‘versões a contrapelo da história oficial’ são baseadas em provas concretas e ainda carecem de reconhecimento social e legitimidade política em seu tempo presente, ou seja, naquele ano de 2003. Esse será um tema comum aos oito depoentes que Guzmán entrevista frontalmente. A exemplo Ofélia que aparece junto com sua filha e que responde, ante a pergunta do entrevistador, se já conversou com a filha sobre as torturas,

Não, nunca falei com minha filha, nem com minha família, nem com ninguém. Eu sempre mantive que não me havia acontecido nada... Um pouco como se quer crer, não é? Eu tinha saído com vida, e isto era o indispensável, pois os demais saíam mortos... E eu devia estar contente, e era mais ou menos isso...

Guzmán dirige a mesma pergunta à filha Manuela, e ela esclarece

Não, eu não me atrevia (...) por medo de lhe fazer mal, porque notava que ela não queria tocar nos assuntos, era como se ela quisesse agir como se não tivesse ocorrido nada e... por eu tampouco querer ouvir (...)

Diante dessas condições, Guzmán se impõe como um narrador que ouve com uma atenção minuciosa e transmite aquilo que escuta: assim, a sua presença fílmica assume a voz de um terceiro, a voz de alguém que compartilha experiências limiares, que tocam as raias da condição humana e, então, se propõe a transmiti-las. Em diálogo com os estudos de Seligmann-Silva (2005, p. 81), é como se ele subsumisse o paradigma visual adotado no primeiro filme a um novo paradigma auricular, assim a voz do filme assume uma nova função histórica: a de publicar e entregar à justiça determinadas ‘verdades históricas’ que revelam como a violência, que foi um dos fundamentos institucionais da ditadura pinochetista, se perpetua na memória dos violados, em sua tentativa de apagar o vivido.

Como se pode observar, os depoimentos dos sobreviventes adquiriram diferentes sentidos e significados ao longo dos anos em função de seus contextos políticos e sociais, e de suas redes de representação, conforme atesta Blanes (2010, p. 3) em seus estudos sobre os testemunhos chilenos. O autor considera que, em princípio, os testemunhos tratam de afirmar a singularidade de suas biografias, isto é, a individualidade de suas experiências históricas. Entretanto, eles são enunciados com as palavras próprias do tempo em que testemunham, e a partir dos questionamentos e expectativas que lhe são contemporâneas; as suas finalidades também dependem das questões e interesses políticos e ideológicos do momento em que são produzidos.

Nesse sentido, é possível considerar que a voz fílmica presente em cada um dos filmes da ‘trilogia da memória’ de Guzmán reverbera seus contextos históricos e, ao mesmo tempo, procura intervir no debate público promovido pelas iniciativas sociais e governamentais de seu tempo. Afinal, o Informe implantado pelo presidente Patricio Aylwin teve como propósito fazer um levantamento das violações dos direitos humanos e suas relações com o Estado chileno, mas desvinculado de questões jurídicas. Dessa forma, não seria válido considerar que o filme de Guzmán encampa a condição de um sobrevivente para resistir ao esquecimento e à conciliação social? Não seria possível considerar a obstinação do título como a voz de alguém que diz “nós vamos contar algo de nós, sobreviventes, para vocês”?

Por sua vez, “o caso Pinochet” promoveu um deslocamento interessante na condição do realizador do filme: ele se situa como um depoente entre aqueles arquivados pela Vicaría com o apoio da Anistia Internacional, e torna-se contemporâneo ao assumir a defesa de questões humanitárias, transmutando-se ele mesmo, em testemunha. Ao ceder espaço de enunciação aos outros sobreviventes, a voz do filme assume uma dimensão plural e familiar: ela exige audiência pública, julgamento e legitimidade social. Sendo assim, não seria interessante pensar “O caso Pinochet” como uma voz que exige amparo e reparação oficiais ao se propor como quem diz “nós vamos contar para vocês sobre aqueles que não estão mais aqui”?

Por último, mas não menos importante, resta considerar a cinebiografia “Salvador Allende”, o terceiro momento de Guzmán. Aos seis minutos do filme, o depoimento do artista plástica Ema Malig é antecedido pela seguinte narração de Guzmán em voz over “o poder se cultiva no esquecimento, mas atrás da capa de amnésia que cobre o país, a recordação emerge e as memórias vibram à flor da pele”.

Malig é apresentada diante de uma obra de sua autoria, uma tela em tamanho gigante que retrata uma cartografia desnorteada: os pontos cardeais são subvertidos e traduzidos pelas categorias “errância”, “desterro”, “naufrágio”. Ela declara que vê o exílio “como um grande quebra-cabeças, como uma terra que se transformou em pequenas ilhas onde cada um habita com suas paisagens, com a sua memória.”. Um depoimento que Guzmán desdobra como seu ao continuá-lo da seguinte maneira: “quando descubro a pintura de Ema Malig, vejo ali o Chile que eu vivo: uma terra fragmentada em muitos pedaços, ilhas à deriva que não se encontram.”

Como se vê, o testemunho do realizador sofre uma nova inflexão: ele desfoca a abordagem política e para trazer ao primeiro plano uma poética da rememoração. Melancólica, a voz do filme evoca a luta contra o “espesso e insano silêncio” de que falava o prólogo do Informe Valech escrito pelo presidente.

Comprometida entre rumores e interditos, a voz do filme parece menos depor, e mais sugerir as contradições inerentes ao testemunho ao situar a sua enunciação no trauma da perda de seu sentido existencial. É como se ela dissesse “nós vamos tentar contar sobre os sentimentos que nutrimos por ele para você”. Assim, as representações do passado passam pelos filtros de uma subjetividade ferida frente a qual o espectador dificilmente ousará levantar suspeitas.

Conforme vimos, a ‘segunda trilogia’ de Patricio Guzmán pode ser decifrada à luz das reivindicações sociais e políticas de seu momento histórico. Diante das estratégias de elaboração histórica do passado recente chileno, Guzmán se reinventa e faz emergir a sua biografia em seus filmes não somente a fim de testemunhar sobre o Governo Allende e a barbárie do golpe militar, mas também para reafirmar o valor da memória como exercício político.


BIBLIOGRAFIA

BLANES, JAUME. Represión, derechos humanos, memoria y archivos – una perspectiva latinoamericana. GPS: Madrid, 2010.

GAGNEBIN, Jean-Marie. Lembrar escrever esquecer. SP: Editora 34, 2006

McSHERRY, Los Estados depredadores: la Operación Cóndor y la guerra encubierta en América Latina. Santiago: LOM Ediciones, 2009.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. SP: Papirus, 2012.

RICCIARELLI, Cecilia. El cine documental según Patricio Guzmán. Santiago, FIDOCS, 2011.

RUFINELLI, Jorge. Patricio Guzmán. Madrid, Cátedra, 2001.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A política do testemunho, Projeto História - Revista do Programa de Pós-Graduação em História da PUC- SP, (30), p. 71-98, 06/2005.

VALENZUELA, Valeria. Yo te digo que el mundo es así: giro performativo en el documental chileno contemporáneo. In: Revista Digital de Cinema Documentário, 12/ 2006.

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