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As temporalidades na "trilogia dos testemunhos", (1997-2003) de Patricio Guzmán

  • Foto do escritor: Fábio Monteiro
    Fábio Monteiro
  • 29 de fev. de 2024
  • 5 min de leitura

RESUMO: O presente artigo aborda como a chamada "segunda trilogia" de Guzmán, que denominamos "trilogia dos testemunhos", maneja diferentes temporalidades em função da reconstrução da história recente do Chile. O texto foi elaborado para uma disciplina de mestrado na PUC/SP e problematiza o retorno de Pato Guzmán ao Chile, entre 1997 e 2003.


Em 25 de abril de 1990, Patricio Aylwin, por meio do Decreto Supremo número 355, criou a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação que teve como missão “estabelecer um quadro o mais completo possível acerca dos graves acontecimentos de violação dos Direitos Humanos, seus antecedentes e circunstâncias”. Naquela mesma década, em 1997, o cineasta Patricio Guzmán retornava ao Chile para em busca da realização de seu “Chile, memória obstinada”, um filme destinado ao registro do retorno do cineasta a seu país após mais de vinte anos de exílio.



Fotograma da reconstituição da GAP, a guarda armada que fazia a defesa pessoal de Allende


Desde seu início, a película envolve uma voz over, i.e., uma narração do próprio diretor que sublinha as imagens e evoca as suas lembranças pessoais sobre os eventos históricos do Governo Allende (1970-1973). A abertura do filme se destina ao Palácio La Moneda, porém conta a companhia de Juan, um ex-militante que participou da chamada “GAP”, Grupo de Amigos do Presidente, a escolta armada pessoal de Salvador Allende composta por integrantes do MIR, Movimiento Revolucionário de Izquierda.


Através das memórias pessoais de Juan em torno do La Moneda, a voz over também projeta as suas memórias pessoais sobre aquele lugar público, melhor: sobre aquele monumento público cuja oficialidade foi arruinada com o golpe militar de onze de setembro de 1973. É desta maneira, através deum protagonista dramático personificada pelo sobrevivente Juan, que o realizador imprime uma nova temporalidade aos seus filmes: aquela de quem sofreu um trauma, aquela de quem, todavia, busca encontrar signos capazes de dar sentido às condições de uma experiência histórica.


Essa temporalidade pessoal, febril e hesitante, ora é assertiva a respeito de suas perdas, ora é incerta a respeito de sua condição no mundo. Vale repetir: este filme também é autobiográfico, pois nele o realizador está regressando ao seu país natal após décadas de exílio. E esta condição é inédito em sua cinematografia até então, ela inaugura o que Ruffinelli (2010) e Ricciarelli (2015) convencionaram chamar de “segunda trilogia” ou “a trilogia da memória”, à revelia de qualquer decisão expressa do realizador a esse respeito.

Esta voz over, então, percorre todos os três filmes aos quais a nossa pesquisa se dedica: “Memória obstinada” (1997), “O Caso Pinochet” (2001) e “Salvador Allende” (2003). Esta voz pode ser traduzida como a sutura do argumento fílmico (Nichols, 1997) envolvido nesta “segunda trilogia” – que tem como pano de fundo os avanços e impasses das CNV’s chilenas.


Esta personalidade que ancora esta temporalidade subjetiva emula distintas memórias ao longo da trilogia. Se num primeiro momento ela evoca um testemunho daquele que “retorna do exílio”, num segundo momento ela evoca o testemunho de quem “judicializa a memória”. Em outras palavras, no segundo filme da trilogia, encontramos alguém que tenta compreender como seria possível avaliar, julgar e condenar aquele que provocou o trauma, a ruptura entre a terra e seus nomes, endereços e condições de existência.




Fotograma televisivo do retorno de Pinochet ao Chile. O seu julgamento se tornou um paradigma internacional na luta pelos direitos humanos


Em outubro de 1998, o ex-presidente Augusto Pinochet foi preso pelo juiz espanhol Baltasar Garzón numa clínica de reabilitação em Londres. O caso, desde então, se tornou o mais emblemático do princípio de jurisdição internacional. O realizador, naquele momento, conta com o apoio sua filha também cineasta, para visitar Londres e acompanhar de perto os acontecimentos cotidianos em torno da julgamento, prisão e deportação do ditador.

Assim, a voz over é capaz de se desdobrar em outras modulações como quem acompanha os ritmos sociais e políticos das condições históricas que dão passo à captura do ex-presidente Augusto Ugarte Pinochet e seu julgamento.

Tanto é assim que o filme tem um apelo mais formal do que o primeiro ao enquadrar os depoimentos de sobreviventes como uma foto 3x4. Isto é, a “posta-em-cena” é mais fria, mais técnica e parece emular a moldura administrativa e burocrática própria dos ritos legais e jurídicos e, dessa maneira, ao dar vazão aos testemunhos de mulheres sobreviventes, a voz over se põe ao lado delas para reverberar também as suas memórias pessoais. A subjetividade ainda se faz presente como âncora temporal e, ao mesmo tempo, segue a concretude das coordenadas sociopolíticas coetâneas em busca de sua narração.


Enfim, no terceiro filme da trilogia ainda se encontra este apelo, porém, mais uma vez, com uma nova modalidade tonal: a voz over encarna o testemunho daquele que “tenta se lembrar da História”. Ou seja, se no primeiro filme partimos juntos do diretor em busca da história do Governo Allende (e, também de si mesmo) aqui, no filme de 2003, encontramos os vestígios pessoais do ex-presidente – seu relógio, carteira, faixa presidencial e óculos – mas não estamos muito seguros do que fazer com isso. E nem mesmo estamos certos de nossas convicções políticas.


O momento histórico é outro: em 2003, o Chile assiste às negociações em torno do Informe Valech que avançou em relação ao Informe anterior ao se dedicar à pesquisa, levantamento e reconhecimento das pessoas presas e torturadas durante o regime militar (1973-1990). Além do reconhecimento de mais de três mil mortes e mais de trinta mil torturados, o Informe de 2003 reconhecia os agentes de Estado envolvidos nos crimes de lesa-humanidade e, enfim, serviu de referência teórica e jurídica internacional para futuras Comissões da Verdade.

Nesse sentido, aquela voz fílmica que singrava entre a temporalidade da subjetividade e a temporalidade dos eventos que lhe eram coetâneos, agora encontra diálogo com uma nova temporalidade: a da melancolia. O reconhecimento das ausências de fotos e registros históricos, das lacunas dos arquivos pesquisados, dos desaparecidos se soma aos avanços da comodificação das diferentes dimensões da vida social provocada pelo neoliberalismo. Ou como a própria voz fílmica parece perguntar: “o que é possível lembrar sem se recorrer às imagens estampadas em canecas, camisetas, filmes e museus?”




Monumento a Allende, inaugurado pelo governo do socialista Ricardo Lagos (2000-2006) que se tornou uma referência na redemocratização chilena.


Em resumo, de maneira breve, o artigo procurou destacar como a chamada “trilogia da memória” de Guzmán envolve distintas temporalidades, a saber: a de uma subjetividade que se desloca em função dos critérios sociais e políticos de sua contemporaneidade; aquela ligada às oficialidades jurídicas das CNV’s chilenas, cujos marcos cronológicos servem de “co-incidência” para o lançamento dos filmes em questão e, enfim, uma terceira temporalidade é aquela do esquecimento, aquele tempo que resta e que borra as convicções políticas do argumento fílmico que testemunha. Esta terceira temporalidade em questão está envolta de melancolia, de um sentimento de perda deslocado do objeto da perda - e que permite que a voz over se distancie da política para se aproximar da poética à medida que testemunha ao longo dos três filmes.


Dentre os fatores que nos permitem esta síntese, tem-se as distâncias entre a concretude do La Moneda que serviram de cenas de abertura do primeiro filme e os relatos do terceiro que oscilam entre ora nomear Allende de “anarquista”, ora de “revolucionário” ora de “nem marxista”... Desta maneira, seria possível ainda teorizar sobre como a própria trilogia funda uma outra temporalidade a respeito do Governo Allende: uma temporalidade que mingua da clareza iluminista das convicções políticas aos laivos de uma voz que ainda encanta, porém mais pelo giro autorreflexivo a que se propõe.


 
 
 

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