As faces do terrorismo de Estado chileno através da cinematografia de Patrício Guzmán
- Fábio Monteiro
- 16 de jan. de 2024
- 15 min de leitura
RESUMO: O presente artigo foi escrito para o IV Encuentro Internacional sobre Estado de Excepción da ADHILAC, relizado em julho de 2023 na PUC/SP. Ele analisa as feições do estado de exceção do Chile através da cinematografia de Patricio Guzmán. Ele é um recorte das investigações realizadas ao longo da última década a respeito da filmografia deste cineasta chileno que ainda está em atividade e é reconhecido como um cânone do cinema documentário mundial. O artigo, portanto, se destina a demonstrar como é possível observar o conceito de estado de exceção sofre diferentes operações ao longo das três trilogias guzmanianas.
INTRODUÇÃO
TESTEMUNHANDO O ESTADO DE EXCEÇÃO
Em seu diário de filmagem de La Batalla de Chile, Patricio Guzmán relata que, no dia golpe militar, 11 de setembro de 1973, ele saiu de casa pelas 8h30 da manhã com a câmera e o gravador para encontrar Federico Elton, um companheiro com quem trabalhava desde os tempos da filmagem de El Primer Año junto da Chile Films. Juntos, eles buscariam outros colegas para mais um dia da filmagem que se desenvolvia desde fevereiro daquele ano. A ostensiva presença policial pelo centro de Santiago foi relativizada, afinal “hay distúrbios todos los dias” (GUZMÁN; SEMPERE, 1977, p. 10).
A lembrança de que “o golpe começou pelos rádios” ecoou pelas décadas e emergiu nos depoimentos elaborados pelo cineasta Nanni Moretti no filme Santiago, Itália, lançado em 2018. Em sua apresentação, o jornalista Paolo Hutter e a cineasta Carmen Castillo, dentre outros intelectuais e artistas, ladeiam o cineasta Patricio Guzmán que depõe sobre como foi a manhã de 11 de setembro de 1973, quando Augusto Pinochet encabeçou o golpe militar que acabou com uma das mais longevas experiências democráticas da América Latina
escutamos a primeira mensagem de Allende e ficamos bastante surpreendidos, isto é bastante sério – vai ocorrer finalmente um golpe de estado. Chegamos no nosso estúdio e ouvimos mais duas mensagens de Allende e nos baixou uma sensação de assombro, perplexidade e depois de medo, as duas coisas pouco a pouco (... ) Caminhamos cerca de duzentos metros com tiroteios por todos os lados. Nas casas, as pessoas abriam as janelas aplaudiam quando ouviam tiros. E quando os aviões começaram a passar, cada rasante era como se fosse um gol, era terrível.
Já no dia seguinte ao golpe, Guzmán estava entre as milhares de pessoas que foram enclausuradas no Estádio Nacional onde, por duas semanas, permaneceu confinado convivendo com torturas físicas e psicológicas, gritarias, simulações de tiroteios e fome. Ele recorda de ter sido acordado pelos tremores causados pela movimentação de cinco tanques de guerra em torno do Estádio. Corria à boca pequena que iam ler uma lista de saída e Guzmán estava entre os duzentos e cinquenta nomes libertados.
Pelas onze horas da manhã, os libertados foram chamados para um rito burocrático que levou cerca de duas horas: fotografias de frente e de lado e uma arenga que consistia nos seguintes dizeres
é obrigatório regressar imediatamente às suas casas. É obrigatório respeitar o toque de recolher. É obrigatório ler a Imprensa Oficial e respeitar suas indicações. É proibido falar sobre os prisioneiros do Estádio Nacional. É proibido realizar reuniões em lugares públicos e privados. É proibido participar de qualquer atividade política.
Neste momento, o cineasta oferece através de seu diário uma imagem interessante que não só traduz aquilo que a historiadora Annette Wieviorka denominou de “A Era dos testemunhos” (WIEVIORKA, 1998, p. 192): depois de liberados, Guzmán e mais sete colegas atravessaram uma multidão aflita por notícias de familiares e parentes e, sem direção, se sentaram na calçada para refletirem se “seguimos todos juntos? Primeiro telefonamos às nossas casas? Vamos de ônibus? Chamamos um táxi? Nos dispersamos ou seguimos unidos?” (GUZMÁN; SEMPERE, 1977, p. 12)
Inseguros e tomados por incertezas, Guzmán e um colega tomaram um ônibus no qual permaneceram de pé sendo observados de maneira enviesada pelos passageiros. Enquanto alguns baixaram os olhos, outros “cravaram os olhos nas janelas ou seguiram lendo mecanicamente seus jornais (...) o nosso aspecto chama a atenção e, de imediato, compreendemos que todos sabem de onde viemos”, conforme relata Guzmán.
Neste momento, o seu relato se assemelha o testemunho de Primo Levi que, ao desembarcar em solo alemão em sua viagem de retorno à casa após a libertação de Auschwitz, afirmou ter sido instado pelo forte sentimento de que
cada um [dos alemães] deveria nos ter interrogado, ler em nossos rostos quem éramos, e ouvir humildemente a nossa história. Mas ninguém olhava em nossos olhos, ninguém aceitou o desafio: eram surdos, cegos e mudos, entrincheirados entre as próprias ruínas como num fortim de desejado conhecimento. (LEVI, 1997, p. 114)
O colega de Guzmán foi tomado de conversa por uma senhora que chorou ao dizer que o seu marido também estava no Estádio há três semanas. Mesmo ainda ensombrados pelas ordens marciais e frustrados pela força negacionista dos olhares dos presentes, ele começou a contar tudo quanto tinham visto e vivido, “sin importarle nada”, como que tomado por um senso de “dever de memória”.
A seguir, tem -se um recorte de como este “dever de memória” expressou as transformações que o estado de exceção assumiu no Chile contemporâneo, indo desde as manifestações castrenses na militarização da vida social a partir de 1973, passando pelo silenciamento cultural nos anos noventa e assumindo a combinação liberdade econômica-privações políticas próprias da agenda neoliberal no século XXI. Esta tarefa é um dos resultados da pesquisa de doutoramento intitulada “O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens”, e que foi publicada pela editora Paco em 2022.
Cartaz do filme realizado por Nani Moretti em 2018 e que conta com o depoimento de "Pato" Guzmán e outros artistas e intelectuais sobre a solidariedade internacional ao Chile de Allende
O ESTADO DE EXCEÇÃO EM “A BATALHA DO CHILE” (1975-1979)
Em 21 de junho de 1973, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) realizou o Acto de Solidaridad al Gobierno diante de uma paralisação de 76 dias dos trabalhadores dos setores cupríferos. Desde outubro de 1972, quando os sindicatos patronais se articularam com as forças sociais e políticas dos setores de centro e de direita no estrangulamento da economia chilena, o governo Allende passou a encontrar ainda mais dificuldade de agenciar as forças de situação para a condução de seu governo.
De um lado, aquelas ligadas ao Partido Socialista pressionavam o governo em direção à radicalização do processo revolucionário tendo em vista o que na época se entendia ser a ultrapassagem da ordem legislativa burguesa, ou seja, a entrega dos comandos dos setores produtivos aos diversos movimentos sociais que apoiavam Allende desde a campanha de 1970.
Por outro lado, aquelas forças ligadas ao Partido Comunista defendiam as reformas allendistas baseadas na concertação de forças com a situação, apostando assim no avanço do que acreditavam ser próprio do processo chileno, a saber a superação da ordem burguesa a partir do comando partidário-legislativo que então estava encarnado na histórica liderança de Salvador Allende.
Em linhas gerais, entre uma força e outra, haviam os setores castrenses mais encarniçados interessados na completa desestabilização do regime através de diferentes formas de atentado, a exemplo do tanquetazo encabeçado pelo tenente-coronel Roberto Souper, quando manobrou o regimento blindado nº 02 composto por seis tanques no dia 29 daquele mês de junho contando com o “silêncio do Supremo, do Parlamento e das forças de oposição”, conforme a narração da parte final da primeira parte da trilogia.
As imagens realizadas deste evento pelo cinegrafista Leonardo Henricksen são bem conhecidas, afinal, ao registrar a tomada das ruas pelas forças castrenses, ele acabou filmando a própria morte. A respeito do “estado de espírito” desse momento da filmagem, Guzmán declarou em 2015 em uma entrevista para José Carlos Avellar que
É algo muito comum... Sentir-se protegido pela câmera... Você olha pela objetiva e portanto [acredita que] está mais longe... E ao técnico de som se passa o mesmo, você tem os fones postos e está em outro mundo... Há uma sensação de que a ação e a batalha também são tão apaixonantes que você se esquece de tudo... Você sente medo, mas há algo que te leva a estar ali no meio, é inconsciente... Antes e depois você sente medo... E antes, antes você sente muito medo, pois você se pergunta: o que vai se passar aqui?
O realizador declara, ainda, que as imagens de Henricksen seriam “suficientes”, na medida em que “ele teria filmado tudo de frente e você sente na câmera quando ele toma o disparo, porque ele tenta evitar que ela caia”. Mas, talvez, seja interessante colocar essa “suficiência” em perspectiva com algumas proposições canonizadas pela fortuna crítica e teórica a respeito da representação da morte pelo cinema.
Levando em conta que a câmera decupa e inscreve os nossos olhares em uma realidade histórica que a transcende, ela, assim, determina um compromisso ético com as imagens: uma vez empenhados na circunscrição das imagens do mundo, as suas fruições engajam e interpelam a dar respostas às situações propostas. Sendo assim, diante da singularidade do evento da morte, é preciso ter em mente que a filmagem de um falecimento é, paradoxalmente, o fim da produção de signos, o fim da representação – por extensão, o fim das condições de epistemologia sobre seus assuntos.
Dessa maneira, levando em conta as formas de “atividade visual”, Vivian Sobchack[1] afirmaria que as imagens de Henricksen seriam como um “olhar interventivo”, levando em conta a sua presença nas batalhas de rua, o seu envolvimento físico e seu investimento profissional no contato direto com a tentativa de golpe militar. Enfim, - porque não? - a sua curiosidade em querer saber “o que iria se passar ali” naquele mundo histórico a partir de Santiago de 29 de junho de 1973.
Por sua vez, a partir dos “modos do documentário” de Bill Nichols as imagens de Henricksen seriam a expressão de uma “mirada em perigo” ou “ameaçada”, levando em conta que o cinegrafista corre riscos pessoais. Ele chama a atenção para o fato de a exposição ao perigo se revelar nos “significantes de periculosidade que compõem o enquadramento”, tais como “vibrações sincronizadas com explosões, instabilidade, movimentos repentinos sincrônicos aos tiros inimigos”, dentre outros.
Essa postura ética seria, então, pautada pela valoração em si mesma, tais como a coragem e a convicção de que uma prioridade superior à própria vida engajaria o cinegrafista na tomada. Por sua vez, seria interessante levantar que Fernão Ramos detecta que essas cenas de Henricksen fariam parte de um elenco de imagens que ele denomina de “imagens-intensas paradigmáticas” (RAMOS, 2001, p. 93) junto dos registros da morte de Kennedy feitos por Zapruder, ou da captura instantânea dos ataques às Torres Gêmeas feitas pelos irmãos Naudet[2], dentre outras. A singularidade desse corpus estaria “na dimensão da circunstância da tomada, conforme percebida e expressa pelo sujeito que sustenta a câmera”, conforme traduz Ramos, de maneira a potenciar as magnitudes de suas intensidades; e, então, as suas “enormes reprodutibilidades técnicas”, no que cremos que pode ser melhor compreendido aqui como ressonâncias históricas.
Em resumo, foi dialogando com estas referências que propomos a definição das tomadas de Henricksen como imagens hostis, pois, além de ameaçados, ele e seu dispositivo cinematográfico estariam inscritos em uma matriz mais precisa de interação, a combatividade.
A sua posta em cena, então, seria combativa dado o caráter militante da equipe fílmica em filmar, obstinadamente, uma bobina (cerca de dez minutos) por dia ao longo de sete meses; devido à postura aguerrida em querer transcender as meras descrições de El Primer Año e criar condições para a manufatura de uma análise histórica das condições econômicas, políticas e ideológicas (a instâncias de interpretação aportadas pelo leninismo de Harnecker). Enfim, devido ao caráter marcial que a própria câmera dispunha sobre as circunstâncias, ao disputar aquele naco do território nacional com a caserna: de maneira visceral, emerge a lógica “amigo-inimigo”.
Fotograma da sequência final da primeira parte de "A Batalha..." em que o cinegrafista registra, simultaneamente, a intentona que ficou conhecida como "Tanquetazo" e também a própria morte
O ESTADO DE EXCEÇÃO NA “TRILOGIA DOS TESTEMUNHOS” (1997-2003)
Ao retornar ao Chile em 1997, Guzmán tinha como propósito filmar as sessões de A Batalha do Chile (1975-1979) junto do público jovem, principalmente estudantes secundaristas e universitários. Assim surgiu Chile, memória obstinada (1997) que faz justiça ao seu título ao revelar, dentre outras questões, como o estado de exceção do regime pinochetista provocou um silenciamento cultural e o apagamento da história recente no Chile.
O tema do “blanqueo cultural” imposto pelo pinochetismo, então, vem à tona, marca a censura imposta a seus filmes e dá o tom melancólico que pautará toda a trama fílmica em torno das ambivalências entre a memória e o esquecimento e os conflitos geracionais decorrentes delas. A passos curtos e sorrateiros, Guzmán e Juan perfilam os corredores e janelas, enquanto narrador e realizado se consubstanciam tanto na imagem como na narração afirmando
Nenhum de nós quer falar muito, os melhores amigos de Juan desapareceram aqui. Naquele tempo, eu vinha muitas vezes aqui e em várias ocasiões me encontrei com Juan. Ele foi um dos muitos personagens anônimos que eu filmei para realizar A Batalha do Chile, um documentário de longa-metragem sobre a experiência da Unidade Popular. Depois do golpe de estado, este filme foi exibido em centenas de países e conquistou muitos prêmios. (...) Entretanto, A Batalha do Chile até hoje nunca foi exibida no Chile. Durante a ditadura de Pinochet, ela foi um filme proibido. E, até hoje, os distribuidores não se sentem à vontade para exibi-la. Para muitos, o tema da memória é muito difícil.
Em 2001, quando o presidente socialista Ricardo Lagos completava o seu primeiro ano de mandato caracterizado por temas sociais como a demarcação de terras dos mapuche, preocupações de foro ambiental e as investigações sobre a violência de Estado e as devidas medidas de reparação, cerca de 47% da população chilena se dizia “não muito satisfeita” com a democracia, enquanto 24% se dizia “nada satisfeito” e outros 19% estavam “satisfeitos”, sendo que cerca de 28% concordaram com a sentença de que “para pessoas como eu, dá no mesmo um regime democrático ou não democrático”.[1]
Naquele ano, Guzmán realizou O caso Pinochet que acompanhou a operacionalização da judicialização do ditador entre Espanha e Chile. Em sua parte final, o filme tangencia a sobrevivência do pinochetismo as manifestações em prol do ditador organizadas pelo advogado Fernando Barros, thatcherista e líder do Movimiento para la Reconciliación de los Chilenos[2] lembram “nostálgicos” que ganharam visibilidade histórica através do filme I love Pinochet, realizado por Marcela Said também em 2001. Nele, Barros está em cena reafirmando o pinochetismo como um mito fundador ao dizer que “com a dor de um parto surgiu um novo país e hoje temos um novo Chile”.[3]
Retomando O caso Pinochet, tem-se a explicação de como as decisões sobre o caso foram chaveadas do mundo jurídico para o político a fim de garantir o retorno do ditador ao seu país natal. Carmen Hertz, a advogada das vítimas, é quem avalia a instrumentalização política do caso, ressaltando que 70% da sociedade chilena acreditava que Pinochet deveria ser julgado
pelas costas da sociedade civil chilena houve uma espécie de acordo para outorgar a ele a impunidade pelo genocida que é Augusto Pinochet. O governo assumiu a posição na defesa de princípios, e não de pessoas; e segue defendendo o tema da soberania, sendo esse o único argumento contra as decisões da justiça internacional. E isto é uma barbaridade.
Isso só pode ser entendido dentro dos marcos do que foi a transição chilena que se deu num longo processo de dez anos e que custa muito para se entender; sobretudo quando o tema é a nossa memória histórica e que significou manter toda a institucionalidade da ditadura com reformas que jamais afetaram a essência desta institucionalidade... A detenção de Pinochet de alguma maneira desnudou tudo isso
Como se pode notar, os argumentos fílmicos desenvolvidos pelos filmes da “trilogia dos testemunhos” dialogam com o conceito crítico do pinochetismo como transformismo social elaborado por Tomas Moulian para denunciar as permanências deste estado de exceção. Dentre elas, estão o silenciamento cultural, a politização das normas legais e o acirramento da polarização social através do culto da nostalgia, isto é, da idealização do passado ditatorial como sinônimo de uma suposta ordem social cristã em que as liberdades econômicas são divorciadas das liberdades políticas.
Fotograma de "Chile, memória obstinada" de um momento de emoção dos jovens recordando a tragédia do 11/09/1973.
O ESTADO DE EXCEÇÃO NA “TRILOGIA DA IMENSIDÃO ÍNTIMA” (2010-2019)
Por fim, o que chamamos de “trilogia da imensidão íntima” é formada pelo conjunto dos filmes realizados entre 2010 e 2019, a saber “Nostalgia da luz”, “O botão de pérola” e “Cordilheira dos sonhos”. Em linhas gerais, pode-se dizer que esta conceituação dialoga com as contribuições filosóficas de Gastón Bachelard a fim de detectar como os questionamentos sociais e políticos são filtrados por um exercício fenomenológico da imagem cinematográfica.
Em outras palavras, a cinematografia desta trilogia envolve é baseada no exercício de uma heurística das imagens, no convite de uma contemplação do valor poético das imagens que ora exploram os elementais do espaço geográfico chileno – o deserto, a água e a pedra, respectivamente – e ora escuta testemunhos e lança a sua mirada para os temas econômicos e urbanos do Chile contemporâneo.
Este exercício de poética das imagens começa em “Nostalgia...” através de um jogo de escalas cuja montagem opera uma lenta posta em cena do arranjo dos telescópios que são alçados em direção à imensidão do cosmos em busca da construção de um estado de devaneio, de êxtase. Em vez da lupa - composta de uma única lente convergente - que rastreou e ampliou fotografias na “trilogia dos testemunhos”, agora se está munido de lentes duplas mirando a atmosfera (o éter) para que elas ampliem a radiação dos testemunhos e das memórias pessoais, tendo em vista novas mensurações do espectro histórico chileno.
Os dispositivos são semelhantes, mas com novos graus de intensidade e de extensão, pois as correspondências entre minúcias de ossadas e superfícies lunares, entre os astrônomos e as mulheres de Calama acolhem a imensidão do mundo e transformam-na numa intensidade do nosso ser íntimo. Isto é, fazem gravitar naquilo que os gregos chamavam de ápeiron, uma zona de indeterminação, cujo equilíbrio reside no movimento eterno entre opostos: oscilamos entre o exercício da admiração e contemplação dos astros chilenos e a escuta sensível dos des-astres da história chilena através das mães que buscam pelos restos mortais de seus parentes no deserto do Atacama.
Toda a terceira trilogia opera um jogo de escalas a fim de construir a história da humanidade pela ótica do estado de exceção
Por sua vez, “O botão...” é aberto com a auscultação da unidade de tensões opostas subjacente à sua aparente multiplicidade: a translucidez do bloco de granito guarda a opacidade da indiferença chilena em relação às suas fronteiras marítimas – o Chile teria “se equivocado em sua missão ao se construir para dentro”, e não para o mar, diz o historiador Gabriel Salazar no filme.
Ao mesmo tempo, o botão que dá título ao filme também dá unidade à multiplicidade de temas do filme: a sua forma circular evoca as homeomerias possíveis entre os elementais da natureza chilena; a sua concretude suscita a história de Jemmy Button, o nativo da Terra do Fogo que, seduzido por um botão, foi levado para a Europa por navios ingleses em 1830 sendo este o registro que levou Guzmán a trazer os povos originários para o filme; e, por fim, ainda em sua circularidade, ele apela para uma repetição, os traumas da necropolítica que atravessa a história chilena desde o período colonial até o arranque do neoliberalismo no século XXI. Em suma, o botão de nácar redunda simultaneamente na história necropolítica que exterminou os povos originários, assim como reduziu à “vida nua” aquelas pessoas tidas como inimigas de Estado pelo pinochetismo.
Por sua vez, em “A Cordilheira...”, a poética das imagens é estimulada através das homeomerias entre as gretas e ranhuras das rochas da cordilheira com o mapa urbano de Santiago e os interditos dos testemunhos. A cordilheira aqui é apresentada como o elemental que constitui a mentalidade chilena e a aparta da presença no mundo; que identifica o povo chileno, mas o segrega de sua condição na história das civilizações, enfim como quem integra a sociedade chilena ao mesmo tempo em que a desterra dos seus laços antropológicos originários.
Em resumo, é possível afirmar que é no quarto final dos filmes que o estado de exceção cada mais relevo e demonstra a sua gravidade, tornando as denúncias das violações dos direitos humanos coextensivas ao tempo presente chileno. Talvez, não seja exagero reconhecer uma “estética da melancolia” (KEHL, 2020, p.18) em desenvolvimento no bojo da trilogia, no sentido de que, em seus filmes, o terrorismo de Estado, as arbitrariedades do sistema jurídico e a suspensão dos direitos fundamentais não são detectadas como problemas específicos do pinochetismo; mas, sobretudo, como questões estruturantes da ordem neoliberal ensaiada no Chile e, hoje, vigentes em escala global.
Exemplos disso são as presenças das ativistas Vicky Saavedra[1] e Violeta Berríos[2] em Nostalgia da Luz atualizam a tragédia de Antígona na busca pelo luto digno de seus familiares. Respaldadas pelas observações do arqueólogo Nuñez, ambas testemunham a partir dos fragmentos das ossadas encontradas ao longo de quase três décadas de pesquisa pelo deserto. Berríos lamenta que a sociedade chilena retarde a mirada da justiça
somos um problema para a sociedade, para a justiça, para todo mundo. Nós sempre fomos consideradas como menos do que nada. Nós somos a lepra do Chile. Isso é como eu vejo as coisas.[3]
A montagem, então, encarrega-se de reescalonar o jogo entre as minúcias das ossadas e o cálcio dos corpos estelares à luz do fóssil de uma baleia, cuja lógica museal permite a Guzmán fazer ver os
restos de restos dos desaparecidos da ditadura militar que ainda não foram identificados” e se perguntar "quanto tempo eles descansarão nestas caixas?". "Algum dia, serão depositados em um monumento?" "Terão direito a um museu como a baleia?". "Algum dia, terão sepultura?[4]
Sentimento semelhante é expresso no quarto final de “O botão...” quando o roteiro expressa que vivemos “exilados em nossa própria terra”[5], tal como Jemmy Button. Por extensão, a denúncia do estado de exceção como uma condição sine qua non do Estado chileno contemporâneo ganha força a partir das imagens de Pablo Salas, o cinegrafista sobrevivente que, desde 1982, permanece filmando ativamente o cotidiano chileno, revelando nele, sobretudo, o que resta do estado de exceção pinochetista.
A sua presença é acompanhada pelo depoimento do escritor Jorge Baradit que critica a onipresença da subjetividade empreendedora produzida pela agenda neoliberal. A “fórmula social chilena”, como ele afirma, é percebida com melancolia ao ter destruído a ideia de espaço público e reduzido a sua população a vidas sem teleologia
A fórmula social chilena é triste... ontem havia partidos, praças, conselhos de vizinhos e hoje basta andar pelas cidades para perceber como são indivíduos que caminham sozinhos em meio à multidão. Eu creio que a tristeza desse país tem a ver com... novamente te digo, não somente com o modelo econômico, mas por estar em meio a um sistema que não se parece com ele... existe um caminho, mas não se sabe aonde vai
CONCLUSÃO
Como se pode notar, é possível detectar que a cinematografia de Guzmán manteve, dentre as suas preocupações, levar adiante aquele mesmo “dever de memória” que o moveu na saída do campo concentracionário chileno denunciando o transformismo do estado de exceção chileno que, da orquestração das armas dos anos setenta, se metamorfoseou na instrumentalização das leis nos anos noventa para sobreviver como agenciamento econômico tendo em vista a destruição do sistema de proteção social em nome do neoliberalismo.
[1] Cf. artigo disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional em https://bit.ly/3rz3pJc. Acesso em: 02 dez. 2019.
[2] Cf. perfil produzido pelo Instituto Nacional de Derechos Humanos disponível em: https://bit.ly/34gT9tI. Acesso em: 03 dez. 2019.
[3] Cf. relato aos 1h09 minutos em Nostalgia da luz.
[4] Cf. relato aos 1h14 minutos em Nostalgia da luz.
[5] Cf. relato aos 1h11 minutos em Botão de nácar.
[1] As pesquisas do Latinobarómetro estão todas disponíveis em seu portal oficial: https://bit.ly/3CBGTGd. Acesso em: 27 nov. 2020 Para a compreensão de mais detalhes para essa pesquisa, vide também tabelas anexadas ao fim do capítulo ou do livro.
[2] Ekaizer, E. Um ex colaborador de Thatcher dirige uma campaña de imagen de Pinochet. Disponível em: https://bit.ly/3yhDaLe. Acesso em: 14 nov. 2020.
[3] O sentido cruzadista do pinochetismo pode ser visto nos filmes La muerte de Pinochet, de Osnovikoff e Perut (2011) e Pionchet, de Ignacio Zegers (2012).
[1] A semiótica de Vivian Sobchack segue desenvolvida por Ramos em seu artigo “A cicatriz
da tomada”. Disponível em: https://bit.ly/3CAKWCx. Acesso em: 02 jan. 2020.
[2] O YouTube contém excertos das filmagens originais dos irmãos Naudet, tais como https://bit.ly/3e7D3ei. Acesso em: 03 jan. 2020.
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