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As dimensões de Salvador Allende na trilogia “A Batalha do Chile” (1975-1979)

  • Foto do escritor: Fábio Monteiro
    Fábio Monteiro
  • 7 de abr. de 2024
  • 30 min de leitura

RESUMO: O presente artigo foi escrito especialmente para o Dossiê Patricio Guzmán organizado pela Revista La Otra Isla, nº09/ 2023. cinema de Patricio Guzmán tem, dentre seus dispositivos narrativos fundamentais, o uso de imagens de arquivo contando, inclusive, com a reutilização de recortes de seus próprios filmes ao longo dos anos. No caso de “A Batalha do Chile”, a trilogia ficou conhecida pelo fato de a equipe de filmagem acreditar estar filmando uma revolução, mas descobrir um golpe de estado em sua fase de finalização. Dentre os arquivos utilizados, estão as imagens produzidas pela Chile Films, uma empresa estatal que refletiu as contradições internas da Unidad Popular, assim com as tensões político-ideológicas que tomavam conta dos agentes cinematográficos daquele momento. O artigo, portanto, pretende refletir sobre o papel que o presidente Salvador Allende assume ao longo dessa trilogia, que dimensionamentos a montagem opera em suas imagens e discursos, levando em conta que, em grande medida, a sua presença deriva de imagens fabricadas pela Chile Films. O artigo, portanto, apresenta um recorte da tese de doutorado defendida na PUC/SP intitulada “O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens”, pioneira ao oferecer simultaneamente uma análise fílmica, histórica e filosófica do conjunto da obra deste chileno.




INTRODUÇÃO

 

A trilogia de A Batalha do Chile  (Patricio Guzmán, 1975-1979) é um cânone do cinema mundial, mas que ainda permanece cifrada por diversos fatores históricos. Dentre os fatores extra fílmicos, pode-se cogitar que o silenciamento cultural promovido pelo pinochetismo ao longo da redemocratização chilena foi decisivo para a censura ao filme dentro do Chile até o ano de 2021, momento em que foi televisionado pela primeira vez no país. Em que pese este silenciamento, é válido lembrar que o filme foi divulgado de maneira clandestina através de fitas de videocassete na América Latina ditatorial e que, no começo do século XXI, teve cópias divulgadas em canais streamings, como o YouTube.

Em linhas gerais,  talvez não seja exagero dizer que aspectos como estes também contribuíram para comprometer o avanço da divulgação desta obra em escala regional pela América Latina e, portanto, inviabilizar o avanço de pesquisas acadêmicas capazes de olhar mais perto a maneira como seus três filmes A insurreição da burguesia (Patricio Guzmán, 1975), O golpe de Estado(Patricio Guzmán, 1976) e O poder popular (Patricio Guzmán, 1979) revelam muito das contradições internas existentes no governo Allende (1970-1973), das relações de força que culminaram em um dos regimes de exceção mais violentos da história e também das permanências do pinochetismo no Chile contemporâneo.

Por outro lado, seria importante registrar que, em que pese a sua centralidade como um documento audiovisual, as pesquisas acadêmicas que se dedicam à análise destas obras enfrentam alguns impasses, tais como o acesso às suas diferentes versões – cujas diferenças, como se sabe, foram operadas pelo próprio realizador tendo em vista à atualização do conjunto da obra ao longo do tempo -, à dificuldade de se lidar com a sua permanência em acervos como domínios virtuais, museus e cinematecas e, paradoxalmente, devido à sua permanência como um monumento dentro da própria filmografia de Patricio Guzmán.

Por estas e outras razões, o atual estado da arte de A Batalha do Chile nos convida a interpelar as suas obras por diferentes prismas a saber como elas dimensionam a imagem do ex-presidente Salvador Allende, eleito por uma coalizão de partidos de esquerda em sua quarta campanha eleitoral, em setembro de 1970. Sendo assim, o propósito deste artigo é apresentar um recorte da tese de doutorado que originou o livro “O cinema de Patricio Guzmán – história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens”, lançado pela editora Paco em 2022, ao mesmo tempo em que dialoga com os debates públicos gerados pelas efemérides de 50 anos da Unidad Popular e os 50 anos do golpe chileno, de 11 de setembro de 1973.

Antes de tudo, é importante destacar que a problematização da montagem das treze inserções de imagens de Salvador Allende ao longo de toda trilogia revela outras questões periféricas, mas relevantes para outras frentes de pesquisa, tais como: que relações sociais, políticas e econômicas A Insurreição da Burguesia, O golpe de Estado e O poder popular estabelecem com suas condições extra fílmicas? Tendo em vista que eles foram finalizados para apresentarem uma “análise política”, que interpretações ensejam sobre as tensões partidárias e institucionais que surgiram ao longo do governo Allende? O que os filmes dizem a respeito das divergências internas da Unidad Popular? E a respeito das tendências reacionárias da Democracia Cristã, o que eles informam?

Uma vez delineadas estas fronteiras, quando se tem em vista precisamente o poder Executivo, questiona-se como elas manejam a posta em cena e os discursos de Salvador Allende? [1] Como mensurar o fato de as suas imagens terem sido coletadas dos arquivos da Chile Films? Elas têm a mesma dimensão temporal e discursiva, ou seja, a mesma dimensão histórica ao longo da trilogia? Por fim, quais interpretações são possíveis a respeito do poder popular, as forças sociais de bases que, a partir da paralisação patronal de outubro de 1972, esgarçaram a institucionalidade do governo reivindicando a radicalização da luta de classes?

A título de conclusão desta introdução, destaca-se que estas questões nos levaram a uma categorização de três tipos de imagens recorrentes na trilogia, sendo elas as imagens demóticas, as imagens demiúrgicas e as imagens hostis. As imagens demóticas compõem cerca de “80 ou 95% do filme”[2] e se caracterizam por serem difusas, ambivalentes, ruidosas posto que foram registradas pela própria equipe de filmagem em grandes planos-sequência.[3] Produzidas, então, a partir da própria concretude histórica no devir dos acontecimentos, elas evidenciam a luta de classes que se desenvolvia no país, possuem um “sistema visual contraditória e ambivalente” e seguem abertas em busca de síntese histórica, pois são tomadas em processo de marcha, manifestações, reuniões, assembleias, movimentos sociais e conflitos que tomaram as ruas por mudanças sociais.[4]

Por seu turno, as imagens hostis são aquelas que, cerzidas pela montagem, engendram relações de combatividade e ameaçam o governo Allende, os movimentos sociais ou a própria existência do cinegrafista, a exemplo da icônica tomada de Leonard Henricksen que filma própria morte. Composta por “bustos falantes” de personalidades políticas que ameaçam a democracia liberal, tanques de guerra, helicópteros, armas de fogo ou pelos allaniamentos (batidas militares), as imagens hostis ganham espaço, tempo e volume ao longo da trilogia na medida em que o golpe militar se mostra inevitável.

Por fim, em contraste a estes regimes de imagens, as postas em cena de Salvador Allende, oriundas dos arquivos da Chile Films, foram denominadas de imagens demiúrgicas tendo em vista o seu caráter pastoral no regime fílmico. De natureza extra fílmica, elas são dispostas a urdir a trama fílmica de modo a apresentar um Allende que “olha e fala por todos e para cada um”, uma imagem que singulariza um poder que se exerce sobre uma multiplicidade, uma voz “que guia para um objetivo e serve de intermediário para esse objetivo”. Assim, as chamadas “pastorais de Allende” [5] devem ser entendidas como imagens que personificam a ‘razão de Estado’ leninista defensora da centralidade de Allende e da UP na condução da via chilena rumo ao socialismo, a partir da racionalidade legal e administrativa liberal.

Em resumo, quando justapostas às imagens demóticas, as imagens demiúrgicas de Allende revelam o esforço de governança das forças políticas, de apascentamento das tensões ideológicas e de recondução da babel popular à unidade. Essas questões se expressam na temporalidade forte da eloquência verbal de Salvador Allende em contraposição ao vozerio das imagens demóticas. Como “construtoras” [6], a sua demiurgia singulariza um poder que pretende se exercer sobre uma multiplicidade - a diversidade ideológica dos partidos que compõem a Unidad Popular e o Legislativo, as correntes sindicais que ganharam cada vez mais força desde o governo Frei (1964-1970) e outras frentes institucionais constituintes, tal como o Judiciário e as Forças Armadas.

Como se disse, a trilogia conta com treze inserções de imagens de Salvador Allende, sendo que elas minguam na medida em que o conjunto de filme se destina da polarização social que pretende demonstrar o avanço das direitas e setores reacionários junto às intervenções castrenses no primeiro filme até a defesa dos poderes populares no último filme. Em outras palavras, A insurreição da burguesia conta com a participação de Salvador Allende em sete ocasiões, enquanto O golpe de Estado com cinco e O poder popular somente com uma, logo no começo de filme em que se vê um Allende em desfile de carro aberto, mas emudecido pela montagem que pretende sublinhar a força política dos movimentos sociais.

A seguir, veremos como a análise fílmica, histórica e filosófica dessas imagens demiúrgicas é capaz de revelar os anacronismos, silenciamentos e escolhas operados pela equipe de produção em cada um deles e que, também, permitiram a compreensão das obras como uma trilogia. Em linhas gerais, um de nossos propósitos é demonstrar como o dimensionamento das magnitudes dessas imagens transcende a tarefa de analisar a complexidade de Salvador Allende na história do cinema e se torna um recurso poderoso para a compreensão das contradições Unidad Popular e dos impasses vividos pelo Chile contemporâneo.

 

O DOUBLE BIND DE ALLENDE A PARTIR DE A INSURREIÇÃO DA BURGUESIA

 

Das sete apresentações de Allende no primeiro filme da trilogia, três parecem cruciais, isto é, provocam turning points no arranjo do argumento fílmico, tais como i) o discurso de Allende de 24 de junho de 1973, apresentado em duas ocasiões, aos 29 e aos 34 minutos do filme, de maneira a encerrar a introdução e abrir a escalada fascista dos setores médios até o empresariado; ii) o seu discurso de 19 de abril de 1973, apresentado aos 58 minutos do filme, e que se posiciona como uma guinada em direção aos confrontos civis em meio à paralisação da mina de El Teniente, em abril de 1973; e, por fim, iii) o discurso pronunciado em 21 de junho de 1973, que acompanha o encerramento dos 76 dias da ‘paralisação do cobre’ e dá ensejo às cenas fatais de Leonardo Henricksen no tanquetazo final.

Dentre os exemplos de como este filme agencia as imagens de Salvador Allende, tem-se aquela que marca a passagem do segundo para o terceiro ato do filme, quando se põe em cena o avanço dos setores conservadores e reacionários encarnados nos grêmios patronais e na Democracia Cristã sobre os movimentos sociais, sobretudo aqueles ligados aos setores de transportes. O filme põe em evidência as críticas de determinados trabalhadores ao comando da CUT, defensora do allendismo, sobre os movimentos populares: interessada em cooptar o processo das reformas sociais, as lideranças cutistas pretendiam frear a radicalização do processo pelos movimentos.

Na sequência, o argumento fílmico apresenta  os ataques armados que os setores radicais da Democracia Cristã e do Partido Nacional passaram a fomentar a fim de semear o caos. Estamos em meio a paralisação patronal de 26 dias ocorrida em outubro de 1972 e, logo após as imagens do Movimiento Patriótico de Renovación (MOPARE), criado pelos movimentos populares com o apoio da CUT para resistir à greve patronal, emerge um Salvador Allende manejado de maneira a endossar a sua aproximação junto do poder popular e reafirmar a defesa da institucionalidade.

Neste momento, as imagens demiúrgicas de Salvador Allende foram extraídas da celebração do 40º aniversário do Partido Socialista, em 19 de abril de 1973. Dividido em nove tópicos,[7] o discurso de quase dezessete minutos tem um forte teor altivo e professoral, posto que o presidente começa testemunhando ser o “fundador e o compañero Presidente” do Partido Socialista, cujo alcance nacional mereceria recordações

 

Como não se lembrar do mineiro ao pampeiro, aos ovelheiros das estâncias de magallánicas, ao professor do primário, ao operário industrial, ao carvoeiro! Como não se lembrar daqueles que nunca pediram nada, que jamais tiveram um emprego, que nunca reclamaram rendas, que são e têm sido a mais essencial e granítica força em que se baseia a moral e a vontade revolucionária do Partido Socialista! (La Batalla de Chile I, Patricio Guzmán, 1975)

 

A referência à presença de norte-vietnamitas no evento o levou a registrar as diferenças que existiriam entre a via chilena e as esquerdas mundiais, apontando que “não se abate o capitalismo em uma única grande jornada apocalíptica”. E isto significaria que o Chile, ainda, estava em “campo de batalhas”, cujas trincheiras conquistadas ele assinalava ao afirmar

 

recuperamos para o Chile as riquezas básicas que estavam nas mãos do capital estrangeiro. Tomamos outra trincheira da reação quando terminamos com os latifúndios. Avançamos outra trincheira quando nacionalizamos o cobre. Alcançamos trincheiras quando as indústrias estratégicas e os monopólios passaram para a área estatizada da economia. E o povo tem que apreciar isso, assim como os companheiros de meu partido. Por isso seguimos uma rota justa e seguiremos avançando. E o faremos com base na nossa decisão irrevogável de cumprir o programa da Unidade Popular. (La Batalla de Chile I, Patricio Guzmán, 1975)

 

 

Os desdobramentos desse argumento e a condução na “rota justa” do programa da UP, compõem o excerto utilizado na primeira metade da demiurgia allendista que, ao se referir sobre o que aprendeu com o povo na defesa da independência do país, e para a conquista de dias melhores para as grandes massas preteridas, afirmou que “à lealdade do povo responderei com a lealdade de um militante socialista e como presidente do Chile cumprirei implacavelmente o programa da Unidade Popular”, sendo os aplausos seguidos de um zoom out.

Porém, a montagem acresceu à defesa do programa da UP um trecho do discurso presente sob a rubrica “maior eficiência nas empresas da área social e mais vigilância no funcionamento das outras”, momento em que o presidente clama pela vigilância popular dos meios de produção, assim como pelo aumento da participação popular, tendo em vista a superação da crise econômica. Daí que, na segunda metade de sua demiurgia, têm-se as seguintes palavras

Temos que produzir mais ferro, mais cobre; temos que produzir mais ouro, já que este metal tem alcançando grande valor. Necessitamos de um controle maior sobre a distribuição dos produtos. Aqueles que acreditam que às vezes vacilo que me escutem bem: temos que fortalecer o poder popular, os Centros de Mães, as juntas de Vizinhos, as JAP’s, os Comandos Comunais; temos que os fortalecer. Temos que fortalecer os cordões industriais, mas não como força paralela ao governo, mas sim como forças populares junto das forças do governo de vocês, do Governo Popular. (La Batalla de Chile I, Patricio Guzmán, 1975)

Dessa maneira, a pastoral de Allende, que marcaria a guinada do segundo para o terceiro ato do filme, expressa uma espécie de double bind no regime fílmico, ou seja, ela pretende apresentar uma imagem que, na verdade, vocaliza, simultaneamente, duas mensagens antagônicas, conflitivas: um chamado de união institucional sob a batuta do programa da UP, e o fortalecimento dos poderes populares.[8] Em perspectiva, enquanto a sua primeira aparição encarnava, de maneira mais íntegra, a “razão de Estado” diante do caráter contingencial da “razão de governo” das mobilizações populares, essa segunda posta em cena apresenta uma pastoral que “vacila” em suas prescrições: ela encerra em si a razão conflitiva entre a soberania nacional e a soberania popular, posto que apascenta ao mesmo tempo em que aposta no levante popular.

Dito de outra forma, ao mesmo tempo em que em sua primeira metade (em que Allende é filmado à direita em ângulo baixo), ele sinaliza o forte compromisso com a transição progressiva dentro dos ritos institucionais; na segunda metade (em que Allende é filmado à esquerda em ângulo baixo, o que confere um sentido de campo-contra-campo à imagem demiúrgica), ele acena ao incremento das expressões do poder popular, cujas radicalização ultrapassava os limites institucionais.

É certo que a inserção do parágrafo seguinte a esse excerto traria outros sentidos ao filme. Contudo, não seria demais transcrevê-la para que se possa compreender melhor as suturas das tramas fílmicas. Seguindo os aplausos, Allende continuou

 

Eu digo aos trabalhadores e aos militantes dos partidos, a cada homem do povo que tem um domicílio político, que além de ser um defensor da revolução e do Governo, deve ser um militante das forças do poder popular que o povo foi criando como consequência de sua própria experiência. Mas, separar o militante do Governo e do partido popular do companheiro que compõe os poderes populares formados por eles mesmos, seria opor os trabalhadores aos próprios trabalhadores, e isto anularia a força do povo. Necessitamos de mais unidade na Unidade Popular, necessitamos de mais unidade em uma linguagem revolucionária que seja entendida e necessitamos chamar a força revolucionária que não está na Unidade Popular para que conosco avancem com a responsabilidade histórica para fazer a revolução socialista, camaradas. (La Batalla de Chile I, Patricio Guzmán, 1975)

  

                Sob esse ângulo, é possível reconhecer um Allende menos assertivo em seus propósitos políticos e mais preocupado com as fraturas de sua coalizão política. Apesar de eludido pela montagem fílmica, o tom conativo de seu discurso deixa claro que ele reconhece os riscos de desintegração da base social de seu governo: a possibilidade de confrontos dos “trabalhadores contra trabalhadores” pode não ter sido vocalizada em sua pastoral, mas compõe as imagens demóticas do terceiro e último ato do filme.

 

O ALLENDE ACOSSADO A PARTIR DE O GOLPE DE ESTADO

 

                O segundo filme da trilogia tem início reprisando a tentativa de golpe de estado de 29 de junho de 1973, sendo que este tancazo liderado pelo comandante Robert Souper é narrado pelo filme como um evento que provocou a morte de 22 pessoas, enquanto “o Parlamento e o sistema jurídico e os partidos de oposição guardavam silêncio”. O argumento fílmico demonstra um esforço de revelar como os generais Pickering, Sepúlveda e Prats estavam dentro os líderes da legalidade que sufocaram a tentativa de golpe.

Junto deles, está José Tohá que, de acordo com Joan Garcés, era um nome forte do Partido Socialista que, na condição de Ministro do Interior, “personalizava a vontade de coexistência e de entendimento com a oposição” (Garcés, 1990: 219) . A sua nomeação como ministro da Defesa foi consoante à aglutinação da oposição política junto das soluções castrenses. Em suma, a sua imagem ladeada pelos generais dispersando as multidões ao rés das ruas é um sintoma da vulnerabilidade que o país enfrentava. De tal maneira que o filme se vale do efeito de freeze, um congelamento da imagem, para guardar um close no rosto de Augusto Pinochet, apresentado como a encarnação dos setores militares que ainda “permaneciam na expectativa”, ou seja, que estavam em compasso de espera pelo golpe militar.

A transição entre esta reprise dos eventos históricos e a construção do novo argumento fílmico é feita através de Carlos Prats reclamando pelo estado de sítio como o único recurso capaz de conter a grave situação do país. Entenda-se o estado de sítio como um recurso às mãos de um chefe de Estado que “possibilita a suspensão temporária dos direitos e garantias dos cidadãos, além da submissão do Legislativo e do Judiciário tendo em vista a defesa da ordem pública”.[9] Em resposta a esse apelo, o filme apresenta aquela que será a última pastoral pública de Allende de toda a trilogia, o seu encontro com o povo reunido na praça da Constituição na noite de 29 de junho de 1973.

Originalmente ao longo de quase doze minutos,[10] Allende afirma ter convocado a população para que “compreendam a tarefa que têm que cumprir desde aquele em diante”, a saber, que o país estava vivendo os “mesmos dias malditos vividos entre 4 de setembro e 3 de novembro de 1970 que culminaram no assassinato do Gal. Schneider”, um legalista que defendia o reconhecimento da vitória eleitoral de Allende.

Após ter rendido homenagens àqueles falecidos ao longo do dia em função da tentativa de golpe, assim como aos setores legalistas da caserna, Allende se vale do último quarto de seu discurso para denunciar a instrumentalização da democracia, ao dizer que os setores golpistas “usam a palavra democracia para se ocultarem e se proteger, mas atuam violando a Constituição e são antidemocráticas e pró-fascistas”, com seus “atos terroristas”.

A posta em cena de Allende, com cerca de um minuto e quinze segundos, contempla os momentos finais daquele discurso, precisamente, a reiteração da defesa da “via chilena ao socialismo” através da caducante institucionalidade chilena. Tentando trazer a multidão para perto do peito ao tê-la por “compañeros”, ele afirmava

 

O povo já sabe o que eu tenho repetido. O processo chileno tem que marchar pelos trilhos próprios de nossa História, de nossa institucionalidade, de nossas características. Portanto, o povo deve compreender que eu tenho que me manter leal ao que já disse: faremos a revolução em pluralismo, democracia e liberdade, e isto não significará tolerância com os antidemocratas, tolerância com os subversivos e tolerância com os fascistas, camaradas! (La Batalla de Chile II, Patricio Guzmán, 1976)

 

 Os aplausos foram seguidos pelos clamores públicos de fechamento do Congresso Nacional, isto é, pelo decreto do estado de sítio, uma medida que colidia frontalmente com os pedidos de “compreensão” trazidos pelo presidente. Os ditirambos populares que um dia foram consoantes à ascensão da pastoral allendista ao posto máximo da soberania nacional chilena, definitivamente, estavam ultrapassando-a no regime fílmico da trilogia.

Em outras palavras, o clamor das forças populares apontava em outras direções, sendo que as alternativas já teriam sido apresentadas, tais como o caminho vietnamita ou o cubano que, aos olhos daqueles tempos, demonstravam a necessidade de se cooptar as Forças Armadas tendo em vista da derrubada da legalidade burguesa. A euforia logo foi aplacada por um tom grave e melancólico, quando o presidente reiterou a sua disposição ao diálogo e tratou de se explicar dizendo que

Da mesma maneira que sempre falei ao povo, eu falo nesta noite. Eu sei que é possível que o que vou dizer não agrade a muitos de vocês, mas têm que entender qual é a real posição desse governo: não vou [vaias] – escutem bem e com respeito – não vou fechar o Congresso, porque seria absurdo. Não vou fazê-lo. Mas, se for necessário, eu enviarei um projeto de lei para convocar um plebiscito para que o povo se pronuncie! (La Batalla de Chile II, Patricio Guzmán, 1976)

  Dividida, a pastoral foi encerrada com novos pedidos para que o povo cumprisse o “contrato de 21 de junho”, aquele que pôs fim à grande greve mineira de Rancagua: “recuperar as horas perdidas pela paralisação, trabalhar mais, produzir mais e sacrificar-se mais pelo Chile e pelo seu povo”; enfim, fazer as “usinas levantar suas fumaças para saudar a pátria livre”. Para tanto, o presidente assinala ter recebido o apoio de “distantes vozes fraternas”, tais como a do líder argentino Juan Domingo Perón, do mexicano Luís Echeverría, do cubano Fidel Castro e o “heroísmo de milhões de homens vietnamitas”.

Até aquele momento, a pessoa e o cargo institucional de Allende, ainda, tinham lastro suficiente para aglutinar multidões nas ruas, e, assim, encarnavam alguma possibilidade de paz social. Contudo, a partir de então, a oposição blindou as possibilidades de acordos institucionais, contou com o apoio decisivo dos EUA para agravar a crise econômica e, consequentemente, estimular o clima de anarquia e violência que tomaram conta do país ao longo dos meses de julho e agosto.

Por volta dos 24 minutos de filme, o argumento fílmico avança com um Allende tentando conquistar “um acordo mínimo com a Democracia Cristã”, mas sem êxito. A sua oitava aparição revela um outro presidente, dessa vez, acuado dentro de quatro paredes, anunciando a renovação forçada de seu gabinete ministerial. O discurso realizado em 05 de julho de 1973, originalmente com pouco mais de dezesseis minutos[11], foi televisionado e se pautou pelo tom ameno de uma conversa burocrática. As considerações iniciais se destinaram à denúncia das possibilidades de “ruptura violenta do regime institucional”, que teriam sido evitadas pela “tradição e lealdade das Forças Armadas à Constituição.”

Allende reiterou a solidariedade internacional citando os cabos que teria recebido “de todas as latitudes do mundo”, a exemplo de Argentina, México, Bulgária, Camboja, Cuba, Guiné, Peru, Iugoslávia, Equador e de ambos Vietnãs, além do respaldo diplomático da “Internacional Social-Democracia”. Como foi colocado na introdução deste artigo, neste momento, o dimensionamento das imagens de Allende suscitam uma questão importante: por que o presidente não citou o apoio da União Soviética, o arrimo da esquerda internacional naqueles tempos de Guerra Fria?

Dentre as respostas possíveis para esta questão, estão as reflexões de Sérgio Bitar, ex-Ministro das Minas do governo Allende e que participou da visita de Salvador Allende à União Soviética no final de 1972. Bitar considera que a visita ao império soviético estava acompanhada por grandes expectativas, pois o democrático líder chileno partia em busca de recursos com liquidez internacional que pudessem atender às demandas imediatas de bens primários e peças de reposição industriais.

Façamos então um breve itinerário em torno da complexidade destes fatores para se compreender melhor as dimensões de Salvador Allende ao longo da trama fílmica da trilogia. A dimensão dos problemas chilenos no último trimestre daquele ano pode ser traduzida em cifras: os impactos do paro de octubre teriam contribuído para acentuar o déficit a cerca de US$ 500 milhões para 1973. Entretanto, o Kremlin se ofereceu, somente, para refinanciar os US$ 80 milhões devidos, dispor US$ 20 milhões adicionais de livre disponibilidade, além de US$ 27 milhões como crédito de provisão de matérias-primas e alimentos (Bitar, 1980: 213) . O ex-ministro reconhece que a visita à URSS “gerou perplexidade na UP”, pois o baluarte do marxismo-leninismo deixava a “via chilena rumo ao socialismo” à deriva em meio a uma América Latina devastada por golpes militares financiados pelos EUA.

Dentre as razões para o abandono soviético, estaria a incapacidade de o Chile garantir estabilidade política à sua vanguarda e, por extensão, não figurar dentre as prioridades internacionais da órbita russa, sendo elas o Vietnã, Egito e Cuba naquele momento. Bitar, também, reforça o fato de o bloco socialista não ter agências internacionais de fomento econômico emergenciais, tal como a famosa Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional, o US-AID, fundado em 1961. Em decorrência dessa constelação de fatores, o flanco externo chileno ficou descoberto, o país se via cada vez mais dependente da economia, e o apelo da solidariedade internacional à via democrática chilena era, sobretudo, um recurso de retórica.

Sob o “cheiro de pólvora” daquelas condições, o discurso de Allende recorreu ao “fervor patriótico”, à “consciência revolucionária” e à “responsabilidade cívica” da população que permanecia em suas casas na defesa da revolução em “pluralidade e democracia”, e fez questão de citar um manifesto legalista endereçado a ele pelos reitores de universidades particulares. As considerações iniciais do manifesto diziam que os reitores

 

tinham se reunido para apresentar a vocês, estimado Presidente e amigo, o testemunho de nossa adesão cidadã frente ao delituoso comportamento de uma fração de certa Unidade Militar. A sua ação, que comprometeu a paz pública, causou danos físicos e morais e destruiu vidas humanas e, ao cabo, serviu para evidenciar a solidez de nosso regime constitucional e a lealdade e eficiência de nossas Forças Armadas e de Ordem. (La Batalla de Chile II, Patricio Guzmán, 1976)

 

Dentre os signatários do manifesto republicano, estava Fernando Castillo Velasco, um arquiteto partidário da Democracia Cristã que, como reitor da Universidade Católica, implantou uma série de medidas progressistas que garantiram a participação do corpo discente em instâncias da administração universitária. Também, reconhecido na época pela atuação de seus filhos Cristian e Carmen junto do Movimiento de Izquierda Revolucionaria, o MIR.[12] Castillo declinou do convite de Allende para compor seu novo gabinete. Em entrevista ao filme, o reitor argumenta contra a Unidad Popular destacando o caráter arrivista da coligação, ao dizer que

 

quando a UP lança programas, projetos para o Chile que possam realmente significar os interesses coletivos, a UP primeira pergunta: quem supostamente ficará contra eles? E ela procura com uma lupa e, quando os identifica, apresenta-os como uma minoria. Pessoalmente, eu creio que todos os grandes projetos de transformação da nossa sociedade, eles devem ser bem explicados como mensagem e devem ser apresentados como uma força realmente crescente em relação aos objetivos de Chile. Então esta é a obrigação mais fundamental de um governo. (La Batalla de Chile II, Patricio Guzmán, 1976)

 

A presença de Castillo no filme, portanto, põe fim às chances de negociação do governo com a Democracia Cristã. Dado o seu caráter antagonista, ela indica, simultaneamente, o ocaso das imagens demiúrgicas de Salvador Allende e a escalada cada vez maior das imagens hostis. Esta condição se materializa ao final do segundo filme quando um letreiro branco com escritos em preto interrompe a ordem diegético em que se lê: “mañana del 11 de septiembre/ primer comunicado del presidente Allende”. Acossada, a demiurgia allendista se resume à fragilidade da transmissão radiofônica de sua voz que, em tom de desabafo, diz:

Aqui fala o presidente da República desde o Palácio La Moneda. Informações confirmadas assinalam que um setor da Marinha teria isolado Valparaíso e que a cidade estaria ocupada. Em todo caso, estou aqui no Palácio de Governo e aqui ficarei defendendo o governo que represento pela vontade do povo

  A voz over se vale, então, de um recurso que se tornou recorrente na filmografia do golpe: a narrativa dos eventos é acompanhada pela precisão cronológica aberta junto da inserção de imagens aéreas com cerca de trinta segundos – aliás, as únicas imagens aéreas de toda a trilogia[13] - que atualiza a visão panóptica das imagens hostis: definitivamente, aquilo que é percebido, já está capturado. A natureza dessa imagem remete, novamente, a um breve diálogo com Virilio. Pois, a partir dele, pode-se compreender como a disposição do ponto de vista de uma máquina de guerra (Virilio, 2005:153)  implica no reconhecimento – e, porque não, na denúncia – daquela “vontade de iluminação generalizada” subsumida no projeto iluminista moderno e que serviu de rastilho para a emergência dos regimes de exceção do século XX, entre os quais o pinochetismo se destaca.

 

UM ALLENDE MEDUSADO A PARTIR DE O PODER POPULAR

               

O poder popular é, provavelmente, o filme menos avaliado da trilogia. Quando colocado em perspectiva, ele exige que se tenha em mente que a equipe de produção do filme acatou as palavras de Alfredo Guevara, então presidente do Instituto Cubano de Artes y Indústria Cinematográficos (ICAIC), e de Saúl Yelín, seu Diretor de Relações Internacionais, quando disseram que “se tinham dificuldades, que fossem à Cuba e teriam tudo, absolutamente tudo para terminar a película” (Sempere, 1977: 93) .

Em março de 1974, o cineasta e editor Pedro Chaskel e a cientista política Marta Harnecker[14] juntaram-se à equipe que tinha, como assessores intelectuais, os cineastas José Pino e Julio García Espinosa. Esta, então, foi a equipe que trabalhou na finalização dos argumentos fílmicos da trilogia: Chaskel e sua experiência que vinha desde os movimentos culturais em torno do Nuevo Cine chileno dos anos 1960; Harnecker e sua formação marxista na França; Pino e Espinosa e suas visões de mundo ligadas à Revolução Cubana.

A primeira parte, A insurreição da burguesia, levou um ano para ser finalizada e teve a sua estreia mundial em Volgogrado (ex-Stalingrado) no começo de maio de 1975, coincidindo com as efemérides soviéticas dos trinta anos da vitória sobre o nazifascismo. Na ocasião da exibição do filme na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, em 21 de maio daquele ano, Chaskel concedeu um depoimento ao jornal Le Monde que indicava a sedução e os desafios que tais imagens provocavam

 

A dificuldade de montagem surge da qualidade do material e de seu imenso valor de testemunho. Nós sofríamos cada vez que cortávamos dois fotogramas. A única posição era a de se manter um pouco à margem e deixar o material falar por si mesmo. De certa maneira, o aporte desse filme vem mais do próprio material filmado no sentido de que a montagem, antes de tudo, protegeu a filmagem. Existe algo de novo nele, uma maneira de aproveitar o som direto e todas as tecnologias do cinema atual.[15]  (La Batalla de Chile III, Patricio Guzmán, 1979)

 

A cautela de Chaskel sobre o posicionamento diante dessas imagens sugere uma reflexão interessante, pois, ao se pôr ao lado durante o processo de montagem, ele demonstra a preocupação de tornar os cortes, a sutura[16] do filme, tênues o suficiente para que as emoções[17] daquele momento ganhassem dinâmica, ritmo e perspectiva histórica próprias.  A finalização da segunda parte, diz Guzmán, consumiu cerca de um ano. Por sua vez, a finalização de O poder popular em 1979, se deu, de certa forma, tardiamente, marcando um hiato de dois anos desde O golpe de Estado colocando sob suspeita diversos temas, dentre eles como a formação althusseriana de Harnecker teria impactado este filme; como os princípios da Revolução Cubana teriam comprometido a produção, dentre outros.[18]

Antes de encerrar com a análise da única presença de Salvador Allende em O poder popular - e a última de toda a trilogia -, seria valioso reforçar que, quando justaposto ao rol de análises históricas e sociológicas publicadas na transição para os anos oitenta, o filme O poder popular demonstra o potencial de participação na viragem historiográfica que visou maior protagonismo das forças sociais populares na compreensão do governo Allende e da UP.

Tendo como pano de fundo cronológico os desdobramentos da paralisação patronal de outubro de 1972, o filme percorre os espaços assumidos pelo poder popular, seus efeitos institucionais e as fissuras revolucionárias abertas nas ocasiões em que a propriedade privada dos meios de produção foi superada. Nesse sentido, ele oferece aportes fundamentais para as perspectivas que têm vindo à tona a partir do ano de 2020, quando surgiram as efemérides em torno dos 50 anos da Unidad Popular e seus temas correlatos.

Quando cotejado com os argumentos fílmicos das duas primeiras partes, é instigante pensar o que teria levado a equipe a escolher o som de uma flauta andina para abrir e determinar o enredo fílmico de O Poder popular, levando em conta que esse teria sido um dos temas mais dramáticos – e ainda hoje candentes – nas interpretações históricas sobre o governo Allende e sua Unidad Popular (1970-1973).

O instrumento musical nativo ressoando uma melodia doce e lenta tem um forte apelo étnico e um cariz afetivo que dá uma nota emocional ao filme. A sua escolha, portanto, induz a fruição do filme a partir do ponto de vista dos subalternizados, ou melhor, pela ótica dos marginalizados pela história oficial. De início, a flauta sublinha a apresentação dos créditos do filme desde os segundos iniciais, mas sofre uma gradativa transformação se convertendo nas aclamações populares que gritam o nome do presidente Allende, que, então, aparece em carro aberto em meio a uma parada cívica.[19] A cena é acompanhada pelo esforço explicativo da voz over que silencia Allende para apresentar as conquistas e os desafios de seu governo

Santiago de Chile, 1972. Em apenas 18 meses o governo socialista de Salvador Allende conseguiu cumprir com uma parte importante de seu programa de transformação social. No transcurso de um ano e meio, ele nacionalizou as grandes minas de cobre, ferro, nitrato, carvão e cimento. Nesse período, o Estado consegue controlar a maioria das empresas monopolistas do país. Além disso, conseguiu desapropriar 6 milhões de hectares de terras inativas/ improdutivas e estatizou quase todos os bancos nacionais e estrangeiros. De sua parte, durante esses 18 meses, o governo norte-americano e a oposição interna obstaculizaram seriamente a gestão do governo. Apesar disso, Salvador Allende tem mantido o apoio de amplas camadas da população. (La Batalla de Chile III, Patricio Guzmán, 1979)

Essa é a décima primeira e última aparição de Allende na trilogia, sendo, também, a mais longeva com quase quatro minutos (precisamente três minutos e trinta e oito segundos). Contudo, apesar de sua duração extensiva, aqui Allende - calado, mas em evidência, de corpo aberto, perfilado na retidão da cerimônia pública - é posto como uma cifra de uma situação suspensa no transcurso histórico. Destituído de sua demiurgia, a atualização do governo Allende no filme de 1979 pode ser lida como um interregno no sentido gramsciano, isto é, um momento extraordinário em que

 

o quadro jurídico existente de uma ordem social perde a sua aderência e já não pode se impor, enquanto um novo quadro, feito à medida das forças recém-emergidas que geram as condições responsáveis por tornar o antigo quadro inútil, ainda está na fase concepção, ainda não foi completamente montado ou não é suficientemente forte para ser colocado em seu lugar.[20] (La Batalla de Chile III, Patricio Guzmán, 1979)

 

Detectada como crise, portanto, a via chilena é lida como um caminho aberto, mas incompleto; uma causa em processo de luto; um interdito ainda em negociação; enfim, existiriam diferentes formas de se ler esta imagem de Salvador Allende que, neste momento, é posto em cena de maneira ambivalente: ele é manejado como uma personalidade pública cujo corpo encarna um determinado corpo social utópico, mas destituído de voz, apesar de todas as demiurgias que lhe foram restituídas ao longo dos dois primeiros filmes.

Ato contínuo, esta cifra em suspensão dá ensejo à reapresentação dos eventos decorrentes da paralisação patronal de outubro de 1972, a começar por uma das variedades dos “sintomas mórbidos” que surgem em tempos de crise. A assembleia dos empresários do setor de transportes evoca o corporativismo e chama a uma ação unitária “como um só homem contando com o apoio de [suas] mulheres”, tendo em vista “uma paralisação geral por tempo indeterminado até as últimas consequências”.

A paralisação patronal, um tema que já havia sido explorado no terço final de A Insurreição da Burguesia e no segundo quarto de O golpe de Estado, é aqui retomado com as imagens dos veículos parados, sendo pontuadas com trechos de uma entrevista com o presidente da Sociedad de Fomento Fabril, a SOFOFA ou SFF. Ele é um dos três empresários perfilados dentro dos primeiros quinze minutos em uma mise-en-scène inédita no conjunto da trilogia fílmica, pois ela determina a abertura de uma escuta ao inimigo por parte da equipe de filmagem Tercer Año.

Explicando isso melhor, quando se “rebobinam as fitas”, passam-se em retrospectiva a disposição do microfone à irada senhora de óculos escuros, a conversa acanhada com a dona de casa eleitora de Jarpa (Partido Nacional); as réplicas de Victor Garzena, deputado do Partido Nacional, no debate televisivo; a conversa de Fernando Castillo, reitor da Universidade Católica filiado à Democracia Cristã e; enfim, a transmissão televisiva oficial da Junta Militar que encerra a segunda parte, O golpe de Estado.

Porém, como se pode notar, apesar de todas essas personagens encarnarem as forças reacionárias e instituírem um devir na trama fílmica, até o presente momento, os depoimentos dos inimigos da revolução e, portanto, antagonistas do compromisso político do filme, ou foram capturados através das forças contingenciais (as mulheres já citadas) ou são imagens dotadas de uma segunda natureza, isto é, registros que foram possíveis a partir de outros dispositivos de filmagem.

Agora, em 1979, o argumento fílmico de O poder popular silencia Allende, perfila as forças reacionárias, “filma o inimigo” e abre espaço para a pluralidade de vozes, tensões e contradições das forças dos diferentes movimentos sociais populares[21] que estavam subsumidos nas tramas fílmicas e na demiurgia de Salvador Allende nos dois primeiros filmes.

 

CONCLUSÃO

 

Como se pode notar, as imagens de Salvador Allende são manejadas de maneira seletiva ao longo dos filmes de A Batalha do Chile, sendo que a análise fílmica, histórica e filosófica de suas suturas revela os anacronismos, silenciamentos e dispositivos discursivos que compõem o arco narrativo de cada um deles e, também, permitem a compreensão das obras como uma trilogia. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que as treze imagens demiúrgicas minguam ao longo dos filmes: as seis inserções de A Insurreição da burguesia revelam um Salvador Allende ambíguo que ora é manejado como um revolucionário, ora como um legalista; ao passo que O golpe de estado contém quatro inserções que revelam um Allende cada vez mais acossado e silenciado, inclusive pela cada vez maior magnitude das imagens hostis; por fim, o argumento fílmico de O poder popular  põe em cena um Salvador Allende de longa duração, extensivo, mas calado; manejado como um interregno histórico, a sua demiurgia é silenciada para dar margem a uma pluralidade de vozes que compunham as imagens demóticas de toda a trilogia[22].

O dimensionamento das magnitudes dessas imagens permite não somente analisar a complexidade de Salvador Allende na história do cinema, mas também as contradições que surgiram no bojo da Unidad Popular, os impasses que elas provocaram, a aproximação dos democratas e dos cristãos junto aos setores reacionários nos momentos de agudização da crise do governo Allende e, por extensão, como os filmes de A Batalha do Chile 

permanecem como um intenso documento histórico que ainda tem muito a dizer.


NOTAS

[1] A análise crítica recorreu ao Archivo Allende, disponível nos domínios oficiais do Partido Socialista em: http://www.socialismo-chileno.org/PS/sag/Documentos/textos.html A íntegra dos discursos de Allende que compõem toda a trilogia podem ser encontrados no livro citado;

[2] O índice de originalidade das imagens oscila nos depoimentos de Guzmán: em entrevista a Sempere (1977: p. 84) ele avalia em 95%, enquanto na entrevista concedida a Avellar disponível no DVD produzido pela Videofilmes em 2005 ele avalia em “uns 80%”.

[3] Conforme Guzmán em entrevista a Pedro Sempere, e que a edição “macluhanista, de baixa frequência” de Chaskel fez questão de respeitar, tendo em vista a evidente luta de classes - “luta de contrários” - que se desenvolvia no país GUZMÁN, P.; SEMPERE, P. Op cit. P .99.

[4] Resultado do I Concurso de Promoción del Archivo de la Cineteca Nacional de Chile, o relatório Memorias en Movimiento – Las batallas culturales de la imagen en la Unidad Popular, contém análises ricas sobre a “cultura visual militante que tentou dar conta” dos processos históricos do Governo Allende (1970-973). Centro Cultural De La Moneda. Exposiciones. Disponível em: <http://www.ccplm.cl/sitio/wp-content/uploads/2016/10/161005_Memorias-en-movimiento-II-Concurso-de-investigaci%C3%B3n.pdf> Acessado em 12/11/2020.

[5] Aqui dialogamos com as considerações de FOUCAULT, M. Segurança, território população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Aulas dos dias 8, 15 e 22 de fevereiro de 1978, págs. 155-253.

[6] A construção da categorização das imagens demiúrgicas se deu a partir de PLATÃO. Timeu-Crítias. Trad. Rodolfo Lopes. Universidade de Coimbra, 2011, p. 40.

[7] O discurso original tem 4131 palavras e sua cronometragem foi aferida através do domínio <https://copywritely.com/pt/words-to-minutes/>. O discurso segue disponível no Archivo Allende intitulado da seguinte maneira: Chile há marcado uma actitud señera contra las plataformas del imperialismo. Discurso del compañero presidente Salvador Allende em el 40º Aniversario del Partido Socialista en 19 de abril de 1973. La clase obrera chilena tiene su propia y dura experiencia y una fuerte conciencia revolucionaria. Lo sostuvo el presidente da Republica Salvador Allende, en el Estadio Nacional, en el discurso que pronunció para saludar el cuadragésimo aniversario del PPS.

[8] Seria importante registrar que esse trecho do discurso, a defesa do fortalecimento das várias expressões do poder popular era uma espécie de mote, de jargão dos discursos de Allende: ele também está presente em outros momentos dos discursos consultados somente para a análise fílmica dessa trilogia, por exemplo.

[9] A título de esclarecimentos, nos valemos das considerações de OLIVEIRA, R. O que se entende por estado de sítio? JUS BRASIL, 2010. Disponível em: <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2127608/o-que-se-entende-por-estado-de-sitio-rodrigo-marques-de-oliveira>. Acessado em 05/06/2020.

[10] O discurso intitulado contém 2870 palavras e sua cronometragem foi aferida através do domínio <www.copywritely.com>. O discurso segue disponível no Archivo Allende intitulado da seguinte maneira: Palabras pronunciadas por el presidente de la Republica, compañero Salvador Allende Gossens, ante el Pueblo reunido en la plaza de la Constituición, 29 de junio de 1973. 

[11] O discurso intitulado contém 4018 palavras e sua duração temporal foi aferida através do domínio <www.copywritely.com>. O discurso está disponível em:

[12] Vale lembrar que, desde fins dos anos sessenta, o MIR dava publicidade de seu ceticismo quanto à via eleitoral e sua defesa da luta armada. Logo após a eleição de Allende, em documento público de seu Secretariado Nacional de 10/1970, o partido afirmava “sustentamos que as eleições não são um caminho para a conquista do poder. Desconfiamos que os operários e camponeses sejam governo por essa via. Estamos certos que, uma vez alcançando esse triunfo eleitoral, as classes dominantes não vacilarão em dar um golpe militar. Sustentamos que o aprendizado das massas com as experiências das eleições anteriores seja o que prepare a conquista do poder.” VALLEJOS, Op. cit., p. 23. Como documentarista, Carmem Castillo realizou La flaca Alejandra (1994) e Calle Santa Fe (2007), dentre outros além de contribuir com o roteiro de Salvador Allende (2003), de Patricio Guzmán.

[13] Estima-se que tenham sido compradas pela equipe de produção, posto que, em entrevista a Avellar, Guzmán revelou que tinham o desejo de registrar imagens aéreas, mas não tinham orçamento e tempo hábil para tanto.

[14]A análise crítica da magnitude das imagens de Salvador Allende recorreu aos arquivos da intelectual que estão disponíveis em: http://archivo.juventudes.org/marta-harnecker/cuadernos-de-educaci%C3%B3n-popular Acessado em 02/03/2020.

[15] No original: "la difficulté du montage vient de la qualité du matériel filmé et de son immense valeur de témoignage. Nous souffrions chaque fois que nous coupions deux photogrammes. La seule position est de se maintenir un peu en marge et de laisser le matériel parler par lui-même. L'apport de ce film vient dans une certain mesure du tournage plus que du montage, en ce sens que le montage a simplement abrité le tournage. Il y a là quelque chose de nouveau, une façon de profiter du son direct et de toutes les possibilités de la technologie actuelle du cinéma. Disponível em: <https://www.ccc-grenoble.fr/cineclub/blow-up/item/download/57_c8758c8701f91fa1936e6fe64db0f306.html>

[16] No segundo capítulo de “Reflexões sobre a montagem cinematográfica”, o editor de “Conterrâneos velhos de guerra” (Vladimir Carvalho, 1990) Eduardo Leone compartilha suas experiências sobre os tipos de corte. Lançado pelo UFMG em 2005

[17] Em “Piscar de olhos”, Murch afirma: “encabeçando a lista de seis prioridades que definem um bom corte, está a emoção – a última coisa da qual se fala em aulas de edição: o que você quer que o público sinta? Se ele sente exatamente o que você queria durante todo o filme, você fez o máximo que poderia fazer. O que será lembrado não será a edição, a câmera, as atuações ou mesmo o enredo, mas como o público sentiu tudo isso.”

[18] No livro “O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens” analisamos com minúcia interroga-se, também, sobre qual teria sido o papel da intelectual chilena Marta Harnecker, ex-aluna de Louis Althusser e editora da revista Chile Hoy, assim como do teórico e cineasta Julio García Espinosa, diretor do ICAIC, na produção dos filmes.

[19] Por ora, não foi possível identificar o evento em questão. Apesar de a voz over dizer que estaríamos “em 1972, um ano e meio depois da eleição de Allende”, é possível suspeitar que as imagens sejam de qualquer outro evento cívico, tal como a chegada de Salvador Allende à presidência em fins de 1970.

[20] Consultou-se um artigo inédito de Bauman (2009) a respeito da categoria gramsciana, disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/inedito-o-triplo-desafio/>. Acessado em 08/08/2020.

[21] Neste momento, é válido chamar a atenção para o fato de que as sessenta e sete pessoas entrevistadas neste filme são homens. A análise crítica dos efeitos diegéticos e extra fílmicos deste fator podem ser encontrados no livro “O cinema de Guzmán...” publicado pela editora Paco, em 2022.

[22] A seguir, a minutagem das imagens de Salvador Allende ao longo da trilogia: A insurreição da burguesia:  29m41s; 34m26s; 49m20s; 49m27s; 58m34s; 1h16m28s; 1h31m31s; O golpe de estado: 10m48s; 24m32s; 1h04m40s; 1h15m00s; 1h19m40s; O poder popular: 3min;


BIBLIOGRAFIA

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