A construção da memória cinematográfica de Salvador Allende
- Fábio Monteiro
- 1 de mar. de 2024
- 26 min de leitura
RESUMO: O presente artigo pretende aprofundar na historiografia dos retratos cinematográficos de Salvador Allende, o presidente chileno socialista deposto pelo golpe de estado militar de 11 de setembro de 1973. Para tanto, o artigo coteja as produções fílmicas dedicadas ao ex-presidente socialista com aspectos da conjuntura do Chile contemporâneo através da análise dos seguintes filmes: Il pleut sur Santiago (Helvio Soto, 1975), Salvador Allende (Patricio Guzmán, 2004), Allende en su Laberinto (Miguel Littín, 2014) e, por fim, Allende mi abuelo Allende (Marcia Tambutti, 2015).
Introdução
Em 4 de janeiro de 1971, logo após ser eleito presidente da República do Chile, Salvador Allende concede uma entrevista a Régis Debray no filme Compañero Presidente (1971) de Miguel Littín, à época um jovem cineasta de 29 anos que tinha sido integrado à Chile Films por Helvio Soto. Na medida em que a câmera adentra a sala do encontro, o intelectual francês de filiação althusseriana e com experiência na guerrilha boliviana junto de Ernesto ‘Che’ Guevara interroga Allende:
(Debray) Antes, você era um chefe da oposição, era um revolucionário... Eu o conheci com os companheiros e a gora você é um chefe de estado. O homem muda quando chega ao poder?
(Allende) Veja, sempre me chamaram de ‘Companheiro Allende’ e agora me chamam de ‘Companheiro Presidente’. Está claro que eu sei da responsabilidade que isto significa
(Debray) Mas, o militante muda quando se torna chefe de estado?
(Allende) Eu creio que o chefe de estado que é socialista... Isso sim, a sua atuação tem que estar de acordo com a realidade (00:01:00).
A demanda por virtú, isto é, por um ‘agir de acordo com a realidade’ é altercada por Debray colocando em suspeição as condições de os ideais socialistas permanecerem socialista enquanto vigentes no poder. As suas palavras são justapostas à montagem de uma sucessão de fotografias da carreira política do Partido Socialista, do qual Salvador Allende foi um dos fundadores, sublinhadas por um arranjo instrumental de A Marselhesa.
A abertura do filme se pretende impactante, tanto em sua curta duração quanto pelo manejo dos diversos dispositivos discursivos em questão. Em primeiro lugar, porque era a primeira vez em mais de vinte anos que o Partido Socialista chegava a um pleito eleitoral com sérias dúvidas a respeito de seu candidato. Naquele momento, Allende contava com cerca de sessenta anos de idade somando três derrotas à presidência e uma longeva carreira como senador, ambos fatores pouco atraentes aos olhos das esquerdas da época (Amorós, 2013a, pp. 246-250). Em segundo lugar, porque a Unidade Popular que sustentava a sua campanha era uma coalizão de partidos de esquerda com diferentes propostas políticas, indo desde as reformas sociais defendidas pelo Partido Comunista às pautas mais radicais do MIR, o Movimiento de Izquierda Revolucionaria, mais à esquerda no espectro ideológico. Por último, mas não menos importante, deve-se destacar a formação althusseriana de Debray [1] e o esforço do regime fílmico em traçar uma filiação das causas socialistas ao ideário revolucionário francês, aqui compreendido como uma tarefa que envolveria a ruptura do tecido social; ou melhor, a destruição do estado burguês, tal como levada a cabo pelos eventos de 1789.
As produções cinematográficas da época não ficaram imunes a essas tensões políticas. Conforme apontou Ignacio Del Valle Dávila, as representações cinematográficas da Unidade Popular podem ser aferidas através da análise comparada entre Compañero Presidente e El Primer Año (Patricio Guzmán, 1972):
No primeiro caso, a atenção está posta nas linhas programáticas do Estado e das instituições governamentais, entendidas como agentes revolucionários e encarnadas na figura do presidente Salvador Allende. No segundo, foca-se no papel das classes operárias e do campesinato como atores revolucionários e, em menor medida, da oligarquia, vista como sua contrapartida contrarrevolucionária (2013, p. 3).
O presente artigo compreende que essas tensões sociais e ideológicas transcenderam as produções da Chile Filmes e alcançaram longa duração no tocante às imagens cinematográficas de Salvador Allende. Em outras palavras, os filmes que projetaram a biografia de Salvador Allende, as suas intenções políticas e seus eventuais limites e alcances ideológicos foram filtrados pelas especificidades das conjunturas de seus momentos de produção, assim como pela filiação política de seus realizadores reverberando, então, os dilemas e impasses latentes à responsabilidade daqueles que percebem que ‘devem agir segundo a realidade’.
Isto nos leva então a questionar os filmes que assumiram a tarefa de representar e reapresentar o ex-presidente Salvador Allende, seja em suas dimensões afetivas e pessoais como também ideológicas e políticas. Frente a isso, o artigo elencou os seguintes filmes para a sua análise: Il pleut sur Santiago (Chove em Santiago, Helvio Soto, 1975), Salvador Allende (Patricio Guzmán, 2004), Allende en su laberinto (Allende em seu Labirinto, Miguel Littín, 2014) e, por fim, Allende mi abuelo Allende (Marcia Tambutti, 2015).
Dentre as questões encaminhadas a esses filmes, estão se eles se dedicam somente às questões político-ideológicas do ex-presidente socialista ou se eles são consubstanciados com aspectos pessoais, tendo em vista a reconstrução do compañero. As dimensões ideológicas inerentes à pluralidade da Unidade Popular também são cogitadas na medida em que os possíveis semblantes cinematográficos de Allende dão a ver ou a ocultar as rivalidades, os impasses, enfim as tensões que atravessam a história das esquerdas latino-americanas.
Essas, dentre outras questões, emergiram a partir das respostas oferecidas pela pesquisa de doutorado intitulada O cinema de Patricio Guzmán: a história entre as imagens políticas e a poética das imagens, defendida no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e publicada pela editora Paco (Monteiro, 2022).
Helvio Soto e o Allende armado, 1975
O ano de 1975 foi marcante para o cinema chileno — e, por extensão, o mundial. Em maio de 1975, A Batalha do Chile — A insurreição da burguesia, de Patricio Guzmán, deu início à sua carreira internacional: no dia 9, houve a sua estreia mundial em Volgogrado em um evento que coincidia com as efemérides soviéticas dos 30 anos da vitória sobre o nazifascismo e, no 21, o filme passou pelas telas da Quinzaine des réalisateurs se consagrando no Festival de Cannes.
Contudo, no Chile, a situação era adversa: todos os partidos políticos já haviam sido extintos e as condições de mobilização social eram praticamente nulas. Entre os dias 25 de novembro e 1 de dezembro, o país sediou a Operação Condor, consolidando uma aliança internacional que articulava inteligência e ações ostensivas destinadas ao reconhecimento e extermínio daquelas pessoas vistas como «inimigas internas» (Dinges, 2015).
Nesse contexto, diversos realizadores, artistas e intelectuais chilenos exilados dedicaram-se na construção de laços de solidariedade ao país natal (Aguiar, 2019). Quanto às produções cinematográficas daquele momento, José Miguel Palacios (2015, 2016) detecta que elas almejavam «intervir na esfera política» e debatiam se o importante era fazer um cinema ‘revolucionário’ ou ‘político’. De acordo com o pesquisador, as realizações daquele momento eram movidas por questões como:
Que tipos de filmes fazer? Como localizar um cineasta exilado no espaço público? Para quem destinar, endereçar os seus filmes? Como conciliar dois desejos simultâneos e contraditórios: a necessidade de se ancorar em signos culturais da terra natal enquanto incorporam elementos da cultural local em que agora estão inseridos? (Palacios, 2016, p. 3)
Nessas condições, Il pleut sur Santiago foi uma produção franco-búlgara que se tornou a primeira obra ficcional a abordar os eventos trágicos de 11 de setembro de 1973. Escrita em parceria com o renomado Georges Chochon, nela Soto cumpriu com certas funções pedagógicas ao explicar o golpe junto ao grande público, como também se inseriu no intenso e polêmico circuito de filmes do exílio comprometidos com a solidariedade ao Chile.
Egresso das Artes e da Literatura, Soto chegou a ser diretor do Canal 9 e levou para o cinema seu companheiro de televisão, Miguel Littín, o único dos três diretores da estatal Chile Films que, de fato, entendia de cinema. O seu primeiro curta-metragem, Yo tenía un camarada (Helvio Soto, 1964), conta a história de um garoto que procura flores para o funeral de seu amigo tendo como referência o neorrealismo italiano, como era de costume aos realizadores emergentes naquele momento (Beskow, 2016).
Reconhecido como autor de um «cinema de revisão histórica» (Cornejo, 2013, p.16) e com uma carreira envolvida nos ruídos ideológicos que tomaram conta do convívio na estatal Chile Films, Soto já havia realizado Caliche Sangriento (1969), um filme que pagou o seu tributo ao nacionalismo-popular de sua época ao endereçar uma crítica social a partir da reconstituição de eventos da Guerra do Pacífico. Porém, apesar do apelo nacionalista, o seu caráter experimental comprometeu a sua recepção social pela crítica da época.
Por seu turno, o filme de 1975 foi baseado em códigos narrativos e estéticos convencionais, tais como o realismo das encenações, o avanço linear entrecortado por flashbacks e o apelo dramático do tango de Astor Piazzolla. Destinado ao público internacional, Il pleut sur Santiago foi pensada como uma produção comercial comprometida na reconstituição das tensões políticas desde a tomada de Valparaíso pela Marinha na madrugada do dia 11 de setembro até os fatídicos fuzilamentos que começaram a ocorrer já no dia seguinte. É importante enfatizar que, em seus momentos finais, o filme emula uma resistência armada que, de fato, foi cogitada pelos setores mais à esquerda da Unidade Popular, tais como os socialistas e os miristas, mas que permaneceu como utopia.
O enredo é mediado por Calvé, um jornalista interpretado por Laurent Terzieff, através de quem assistimos os desdobramentos do golpe e sua denúncia junto da solidariedade europeia representada pela grande mídia. A bergmaniana Bibi Andersson interpreta a sua esposa, enquanto Maurice Garrel encarna um operário que vacila antes de se mostrar disposto a uma luta sem concessões. A personagem desse operário representa, em grande medida, as disputas ideológicas existentes no seio das classes trabalhadoras de então e que ganharam maior relevo na historiografia recente sobre o poder popular nos anos da Unidade Popular.
A esse respeito, merecem destaque as entrevistas realizadas pela pesquisadora Márcia Cury cuja tese de doutoramento procurou revelar a diversidade das experiências de classe nos movimentos sociais chilenos da época. Em conversa com trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos, Cury detectou, dentre outras questões, uma riqueza de experiências sociais e políticas que colidiam com a centralização de mando herdada da ordem burguesa, tensionando assim os anseios socialistas contidos no programa político da Unidade Popular:
É importante observar na constituição do movimento sindical chileno a configuração de um sistema com níveis diferenciados de representação que se caracterizaram quase como estruturas distintas. O movimento operário se constituiu de pequenos sindicatos industriais e de comitês sindicais de representação dos trabalhadores das pequenas empresas que não podiam organizar-se em sindicatos, ou seja, composição muito diferente da organização mais ampla, que gerou uma estrutura hierárquica verticalizada, gerida por lideranças políticas que acabaram se distanciando do cotidiano operário. Esta estrutura está representada na Central Única dos Trabalhadores, a partir da sua formação, em 1957 (Cury, 2013, p. 77).
Por outro lado, a pesquisadora Elisa Borges lembra que, apesar de seu teor disruptivo, o Partido Socialista não investiu esforços práticos, econômicos e nem táticos na viabilidade da luta armada, como proferia. Sendo assim, a sua estratégia programática representava «mais uma retórica que se encerrava em si mesmo» (Borges, 2016, p. 4), ocasionando então momentos de grande tensão entre a liderança allendista e os movimentos sociais que compunham o chamado ‘poder popular’, representado por Garrel no filme.
Aqui, Allende é interpretado pelo búlgaro Naicho Petrov, porém, sempre de costas, o que salienta a hagiografia do ex-presidente. Afinal, a recusa de sua ficcionalização permite com que cada espectador(a) construa um semblante allendiano de acordo com as suas próprias convicções políticas. Isso é de suma importância, afinal essa rasura fílmica, por assim dizer, abre um largo espectro de recepção fílmica naquele ano de 1975: miristas, comunistas, socialistas, entre outras tendências políticas, inclusive, as pessoas anônimas que compõem o chamado ‘grande público’ poderiam depositar as suas próprias convicções políticas em um Allende simultaneamente uno e plural.
O filme associa o tempo da política ao tempo mecânico dos relógios que pontuam o enredo, fazendo com que o tempo cronológico imprima uma visão fatalista da história sublinhando a imagem de Allende como um herói trágico. Logo em seu início, uma personagem representando Eduardo Frei, o candidato do Partido da Democracia Cristã derrotado na eleição, diz ao seu Ministro do Interior que «divulgar o resultado das eleições é uma coisa e outra bem distinta é deixar o país nas mãos dos marxistas» (00:18:14). Diante das sevícias antidemocráticas da PDC e do acosso militar já posto em cena na abertura do filme, restou a Allende pegar em armas.
A fim de compreender melhor esse ‘Allende armado’, Tomás Cornejo destaca que essa produção de 1975 deve ser lida como a conclusão de um arco narrativo que teria começado com Voto+fusil (Helvio Soto, 1971), passando por Metamorfosis del jefe de la policía política (Helvio Soto, 1973), censurada logo em sua estreia.[2] Dessa maneira, correspondendo às demandas históricas de seu tempo, Soto construiu um Allende acuado, mas adepto à resposta armada ao golpe de Estado aos 80 minutos do filme, sendo, a partir de então, justaposto à resistência armada universitária e ao operário de Garrel que, ao final, abandona a família para aderir à causa armada à maneira fidelista, como defendia os setores mais à esquerda da UP, aos quais Soto era filiado.
Ao final, as cenas de execução aleatória em um ginásio esportivo servem como denúncia da lógica concentracionária, sendo esta uma mensagem política relevante naquele momento da Guerra Fria. Por fim, de maneira paradoxal, o argumento fílmico de Soto refunda a defesa da luta armada mirista junto do velório de Pablo Neruda, o poeta comunista, historicamente adepto do allendismo pacifista.
Patricio Guzmán e o Allende humanista, 2004
Em diálogo com uma série de intervenções culturais decorrentes da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação do Chile que ocorreram entre 1991 e 2003, a produção guzmaniana Salvador Allende encontrou dificuldades para ser realizada. O filme já continha o propósito de ser o encerramento de um arco narrativo iniciado com Chile, la memoria obstinada (Patricio Guzmán, 1997) e desdobrado por El caso Pinochet (Patricio Guzmán, 2001). A partir de 2010, esta segunda trilogia passou a ser nomeada como «trilogia da memória» em virtude da publicação do livro El cine documental según Patricio Guzmán (Ricciarelli, 2011). A partir de entrevistas com o realizador, esta obra renovou os aportes literários do diretor sobre a sua própria cinematografia, além de reposicioná-lo no horizonte da recepção crítica de seus filmes já composto por obras como Chile. El cine contra el fascismo (Guzmán & Sempere, 1977) ou Patricio Guzmán (Ruffinelli, 2001, 2008).
Dentre as principais características da parceria de Ricciarelli com Guzmán, está o tom memorialístico a respeito de suas convicções políticas e estéticas. Esforço de memória este, por assim dizer, que inicialmente comprometeu a produção do filme, pois, de acordo com Julien Joly, os produtores habituais receberam o projeto com «sinais de cansaço», posto que o realizador apostava na repetição como um método criativo (2018, p. 426). Contudo, a negativa dos parceiros produtores fez com que Guzmán buscasse novos apoios internacionais, tais como fundos de financiamento de mostras e festivais, além de canais televisivos.
A cinebiografia Salvador Allende alcançou então grande êxito comercial e de crítica nos circuitos de exibição mundo afora, sendo divulgada em 19 países — exceto no Chile, o que reiterava a imagem de Guzmán como um ‘agente corrosivo’ da ordem vigente.[3] As entrevistas realizadas pela pesquisadora Natacha Scherbovsky (2015) detectam que, uma das razões para o silenciamento do cinema de Guzmán por mais de três décadas seria a presença de agentes políticos históricos que ainda estavam atuantes na realidade chilena. Visto de outro ângulo, os seus filmes tinham o poder de demonstrar a adesão de agentes da Democracia Cristã ao pinochetismo, ao mesmo tempo que mostravam o passado revolucionário de políticos de esquerda que teriam se acomodado na institucionalidade chilena durante os tempos da Concertación[4] (Scherbovsky, 2015, p. 117).
Para se compreender melhor o Allende construído por Guzmán, deve-se ter em vista a presença do artista plástico espanhol José Balmes no primeiro filme da trilogia: logo na abertura de Chile, la memoria obstinada, o artista refugiado da Guerra Civil Espanhola apresenta o flou, como Balmes mesmo o nomeia, que lhe serve de dispositivo estético para reelaborar as lembranças do 11 de setembro e reapresentar os registros fotográficos em suas pinturas. Visto de outro ângulo, o flou é, portanto, a expressão de seus gestos rústicos que elaboram sfumatos contundentes que evocam as brumas da rememoração; ou, em um sentido mais filosófico, convidam a uma fenomenologia da memória no momento em que provocam a oscilação difusa de nosso olhar entre os traços dinâmicos que coincidem o passado e o presente, o lá e o aqui, o que se dá a ver e o que se apaga.
Eis aqui então um dispositivo valioso para se compreender o Allende de Guzmán: enquanto o filme de Soto delineia um Allende próximo dos ideais da luta armada mirista, aqui, na realidade, existe uma espécie de fenomenologia da memória de Allende. Em ordem de aparição, surgem os artistas plásticos Alejandro ‘Mono’ González e Emma Malig elaborando estéticas de rememoração; o próprio Balmes retorna endossando a compreensão de que a memória é, simultaneamente, restauração e elisão; a cuidadora de Allende, Mama Rosa, se lembra do garoto sonhador; Víctor Pey, militante anarquista, se recorda do amigo de maneira afetuosa; Sergio Vuskovic é posto em cena como ‘militante da UP’ e configura Allende como um «herdeiro dos valores da Revolução Francesa» (00:14:30); o comunista Ernesto Salamanca recorda os itinerários eleitorais allendistas; Claudina Nuñes e Anita, conselheiras do ex-presidente, se lembram do compañero revolucionário e das empanadas com vinhos; o comunista Volodia Teiltelboim recorda da muñeca, da astúcia do ex-presidente...
Nesse momento, a cinebiografia de Guzmán exerce uma espécie de mise-en-abyme ao se projetar como um ‘lugar de memória’ de outros filmes sobre Salvador Allende e a experiência histórica de sua Unidade Popular (ver Monteiro, 2018). Dentre as diversas fontes audiovisuais que compõem metade dos noventa minutos de seu regime fílmico, estão algumas cenas de Le dernier combat d’Allende (O último combate de Allende, Patricio Henríquez, 1998). Conforme o seu título indica, Allende é antagonizado neste filme pelas ações castrenses que são dispostas pelo argumento fílmico acompanhadas de onomatopeias que emulam a passagem do tempo mecânico, além de letreiros que procuram reconstituir a precisão dos fatos e agudizam a percepção fatalista da história: Salvador Allende estava fadado ao conflito. Para tanto, vale-se da posta em cena de gravações de radiodifusão, manchetes de jornais, cenas audiovisuais de terceiros e da valiosa entrevista com o Edward Korry, ex-embaixador norte-americano no Chile em 1970 e que contribuiu para a efetivação da ação norte-americana no golpe de estado. Por outro lado, Le dernier combat d’Allende conta também com o depoimento de pessoas próximas a Allende, tal como a sua esposa Hortensia Bussi, sua filha Isabel, João Garcés, seu conselheiro político e Arturo Jirón, seu ministro da Saúde. Em seu letreiro final, o filme de Patricio Henríquez sublinha o caráter dramático de Salvador Allende em detrimento de suas intenções ou decisões políticas:
Os testemunhos deste documentário são de sobreviventes. Todos os outros que defenderam o Palácio La Moneda foram assassinados pelas Forças Armadas após serem detidos em 11/09/73. Seus corpos foram ocultados. Esse filme é dedicado às suas memórias (00:51:50).
Percebe-se então como a imagem cinematográfica de Salvador Allende permanece suspensa como um signo aberto às ressonâncias históricas. Ora tocada pelo diapasão da luta armada, ora ressonada pelo cariz da violação dos direitos humanos, no filme de Patricio Guzmán ela ganha maior abrangência ao ser contemplada a partir de seu caráter humanista e, por extensão, utópico. Retomando o filme de 2004, pode-se notar nele um Salvador Allende ecumênico, uma liderança política que teria pairado acima das tensas rivalidades ideológicas e institucionais que marcaram o passo da Unidad Popular.
Visto de outro ângulo, em comum, todas as pessoas consultadas tinham, em menor ou maior grau, uma afeição pessoal por Allende. Mas, além disso, o manejo de suas entrevistas de modo a transformá-las em personagens contém uma espécie de flou à Balmes; isto é, a montagem do filme elide a polivalência ideológica da historicidade do governo Allende de modo a atenuar a sua equivalência política e tornar mais radiante o alcance de seu filme.
Os momentos mais intensos desse flou seriam a entrevista com um trio de senhores apresentados como «fundadores do Partido Socialista» de Valparaíso (00:16:56) e outro grupo de sete homens postos em cena como «ex-militantes da UP» (01:02:40), e localizados no último quarto do filme. Reunidos em torno de uma mesa, eles discutem o que haveria de mais político no filme: o que significava ser ‘revolucionário’ naquele momento? Salvador Allende teria sido revolucionário o bastante? Haveria possibilidade de resistência armada? Enfim, alguma forma de resistência teria sido possível? No rastro dessas questões, o exercício da crítica histórica propõe: a elisão das identificações dessas personagens atende a que razões? Seriam motivos de ordem fílmica ou extra fílmica?
Em termos mais objetivos, o grande elenco é convocado para ampliar a radiância de Allende, de modo a torná-lo abstrato em seu sentido ideológico. Questiona-se então se seria possível afirmar que esse flou dialoga com as demandas de consenso e, portanto, de pacificação social das três iniciativas institucionais de verdade e reparação, a saber o Informe Rettig (1990), a Mesa de Diálogo de Derechos Humanos (1999) e o Informe Valech (2003)? Ou ainda com o manifesto No hay manãna sin ayer, apresentado pelo presidente Ricardo Lagos em agosto de 2003 a fim de sintetizar as propostas de direitos humanos de seu governo afirmando:
Ser dever de todos os chilenos estimular com convicção medidas que contribuam para chegar às novas gerações uma nação cuja alma está unida e em paz, e cuja consciência moral deu os passos necessários em verdade, justiça e reparação. Chile só poderá aspirar a um futuro digno, sólido, democrático, se for capaz de fazê-lo sobre a base da paz social, da solidariedade e unidade de todos os chilenos.[5]
Por fim, seria válido reforçar que todas essas iniciativas foram mediadas pela decisiva atuação da Vicaría de la Solidaridad que, desde os anos setenta se posicionou contra o regime de Pinochet denunciando as violações dos direitos humanos, abrigando perseguidos políticos e assessorando na investigação dos casos de mortos, desaparecidos e exilados. Isto porque, a mesma Vicaría também foi fundamental para a entrada e o acolhimento de Patricio Guzmán e sua equipe no Chile em 1987 quando realizavam o filme En nombre de Dios e, a partir do qual, estreitou as suas relações com a divisa ‘amor, unidade e reconciliação’ empenhada pela instituição católica.
Em resumo, seja por razões pessoais ou políticas do realizador, por motivos conjunturais próprios da produção do filme ou ainda por questões de ordem diegética, tal como as licenças para o uso de imagens, o argumento fílmico guzmaniano recorre ao flou de Balmes como dispositivo retórico, pois diante da impossibilidade de identificação das pessoas que depõem, resta o gosto do interdito no gesto da lembrança e o saldo de um recalque a quem se depara com o passado de olho no futuro. Em outras palavras, ao manter os ‘héroes anônimos da Unidade Popular’ de certa maneira subalternizados, o seu Salvador Allende ganha familiaridade dentre aqueles familiarizados com os valores ligados aos direitos humanos, mas permanece fora de foco aos olhos da investigação histórica.
Miguel Littín e o Allende existencialista, 2014
Por fim, Allende en su laberinto veio no embalo das efemérides em torno dos quarenta anos do golpe de estado, um momento em que o noticiário diagnosticava um país vivendo uma «crise de maturidade» (Brodsky, 2013) decorrente das grandes mobilizações estudantis desde 2006, além da crise do consenso transicional expresso no duelo eleitoral entre a socialista Michele Bachelet — coligação Nova Maioria — e Evelyn Matthei, da Unión Democrática Independiente (UDI), ocorrido nas eleições de 2013. Apesar do recalque histórico por parte de instituições oficiais dos temas relacionados ao golpe, o campo do audiovisual assistiu ao recrudescimento dos temas memorialistas, a exemplo de produções como Los archivos del Cardenal (Nicolás Acuña & Juan Ignacio Sabatini, TVN, 2011-2014),[6] La muerte de Pinochet (Iván Osnovikoff & Bettina Perut, 2011), El Mocito (Marcela Said, 2011) e Chile, Las Imágenes Prohibidas (Pedro Azócar & Claudio Marchant, Chilevisión, 2013).[7]
Nessas condições, a produção venezuelana de Miguel Littín apresenta Daniel Muñoz no papel de um Allende ambivalente, um sujeito que encara o seu duplo no espelho ladeado pelas imagens de ‘Che’ Guevara e pelas fotos de Tati Allende, a filha mirista do ex-presidente. Diante do cul-de-sac, o ideário cubano-mirista logo se apresenta como uma solução. O roteiro de Littín se preocupa em reconhecer a existência de militares constitucionalistas, mas ironicamente o faz para endereçar críticas ao legalismo allendista: aos 25 minutos, o comandante Sánchez exerce uma espécie de função especular ao informar o presidente sobre a impossibilidade de resistência armada devido justamente à Lei de Controle de Armas que, de fato, foi aprovada em junho de 1972.
Ao lado dessas questões políticas pontuadas por longas reflexões junto de Augusto ‘El Perro’ Olivares, o filme constrói um Allende galanteador que, tal como em sua vida política, também se vê, digamos, desbussolado no colo de sua amante Miria ‘Payta’ Contreras, interpretada por Aline Küppenheim, ao chamá-la pelo apelido da esposa, ‘Tencha’.
O páthos labiríntico é acentuado a partir dos 45 minutos do filme com o bombardeiro dos Hawker Hunters. As andanças ziguezagueantes e a profusão de efeitos especiais e sonoros fecham uma atmosfera de guerra sublinhada pelos guinchos de cordas e trompetes. Após o suicídio de Olivares, o drama entre a resistência ou desistência ganha um momento de autorreflexão de Salvador Allende em que ele ouve o ex-secretário afirmando
[Olivares] sabe o que Neruda me disse dias atrás? Que o único que tem a razão é Miguel Enríquez e aqueles que junto dele impulsionam a luta armada. Os poderosos jamais entregaram o poder pacificamente.
[Olivares] se isso não é uma guerra, então o que seria, Salvador? Um sacrífico inútil? Um massacre? Uma mostra de dignidade e daí o que? Como segue a revolução pacífica? Espera-se até que ela chegue? O presidente se rende junto aos seus colaboradores e o sonho de justiça e liberdade quedam sepultados para sempre debaixo dos escombros da derrota.
[Olivares] estamos presos em um labirinto, Salvador. Se Allende se rende, o presidente morre. Se Allende morre sem render-se, é possível que o presidente viva. Acabou-se o seu tempo. Sei que a minha morte não foi uma resposta, mas é o único que pude fazer (00:56:46).
Aos brados de ‘Allende não se rende’, o trágico desfecho da resistência armada deixa entrever o chamado littinismo (Silva, 2015), a saber: a filiação política de Miguel Littín junto a defensores da luta armada dentro das linhas da esquerda existentes no país, bastante presente naquele momento de conformação do chamado Nuevo Cine Latinoamericano — e ainda vivo na produção de 2014.
Marcia Tambutti e os espectros de Allende, 2015
Dois meses após o golpe militar de 1973, o jornalista Ricardo Boizard lançou pela Editora del Pacifico El último día de Allende, um livro que foi bem recebido pelos setores conservadores e reacionários da sociedade chilena. O jornal santiaguino La Prensa noticiou a acolhida da obra sublinhando a «tensão dramática» de seu pretenso caráter «semijornalístico», dando a compreender que a obra estaria baseada em fatos e documentos históricos. Dentre as palavras de bem-vinda à obra, tem-se as seguintes:
Constituiu um acaso o modo mais apropriado de reviver o que temos passado pela experiência marxista, recapitulando-a na íntegra, considerando os perigos as quais estivemos submetidos e a necessidade de estar conscientes da lição que isto implica (...) o autor descreve a sucessão de escândalos do regime anterior, as intromissões da URSS e de Cuba nos assuntos internos do Chile, o ambiente corrompido que cercava o senhor Allende, a destruição da economia e os protestos da população traída.[8]
O governo Allende, portanto, teria sido um desvio de rota, uma espécie de soluço na pretensa linearidade narrativa que marcaria a evolução da história chilena da conquista pelos espanhóis à cruzada moral e política empenhada por Augusto Pinochet, tal como os seus seguidores de fato acreditavam (ver Amorós, 2019, págs. 241;296;321). Como desdobramento disso, os impasses e os problemas enfrentados pela gestão Allende seriam patologias resultadas de um presidente inconsequente e de pessoas com deficiência de caráter. A biologização da vida social e política, tão ao gosto dos eugenistas do século XIX, arremataria a recomendação do livro ao se referir especificamente da personalidade de Allende:
Boizard põe acento também nas contradições abismais em que Salvador Allende desenvolvia a sua existência, a inclinação ao luxo burguês e as promessas de redenção que brotavam sem cessar frente à multidão esperançosa. Vincula, de preferência, as razões do suicídio à dupla natureza do personagem, delirante de grandeza.[9]
Fernando García, Óscar Sola e Alejandra Rojas relatam que a obra de Boizard não destoava de seu pano de fundo histórico (1998, p. 214); ao contrário, simultaneamente à persistência das imagens da destruição do Palácio La Moneda e dos restos humanos do ex-presidente, os setores antagonistas levantaram notícias falsas e discursos de achincalhamento à família Allende. O luto diante do golpe militar e em nome da tragédia social que se abateu sobre toda a sociedade marcada por milhares de torturados, desaparecidos, mortos e exilados deveria ser elaborado em silêncio. Recalcada diante do imperativo da sobrevivência — a «vida nua» de que fala Agamben (2015, p. 9-51) —, foram pautadas por coordenadas discursivas e simbólicas que apresentavam o regime pinochetista como um novo tempo pretensamente puro, são e, sobretudo, saudável. De acordo com estes pesquisadores, naquele momento, o diário La Nación publicou um editorial que se tornou reconhecido pela confusão que causou no imaginário social chileno ao dizer:
Nesse pedaço de história, Salvador Allende surge como O Quixote que tirava dos ricos para dar aos pobres, como o vilão que fabricou as filas, em jeans e camisas abertas, sempre alto e forte. Para uns, ele é o mesmo que Aylwin (o primeiro presidente pós-ditadura), para outros, o exemplo que inspira e, para muitos, um rosto confuso que os convoca desde um passado turbulento (García, Sola & Rojas, 1998, p. 214)
Visto de outro ângulo, o nome de Salvador Allende se tornou uma expressão dinâmica que, entre os discursos oficiais e os rumores cotidianos, oscilou em uma grande zona de incerteza e, por extensão, de indecidibilidade. Falar a seu respeito poderia significar tomar partido da realidade e, ao mesmo tempo, colocar a própria vida em risco. As suas condições de territorialização semântica foram detonadas ao longo dos dezessete anos de vigência do pinochetismo, tal como lamenta um universitário ao final de Chile, memória obstinada a Guzmán, em 1997: «eu preciso acreditar em algo, pois eu deixei de acreditar na minha família, nos militares, na escola... Eu deixei de acreditar!» (00:53:26).
Essas questões ligadas à memória como páthos (Ricoeur, 2007, p. 83) e que demandam as investigações do que foi recalcado, rasurado e esquecido é um dos letimotivs de Allende mi abuelo Allende. Depois de viver por mais de uma década no México, Marcia Tambutti, a neta de Allende, retorna ao Chile e se empenha em realizar um filme de cariz afetivo, uma obra que de grande sensibilidade que investiga tanto as memórias pessoais e sociais de seus familiares a respeito de ‘Chicho’, como Allende era chamado na intimidade, quanto também a própria identidade da realizadora. Nesse sentido, o filme flerta em grande medida com o que Jean-Claude Bernardet categorizou como um «filme de busca» (2014) ao se referir às produções Un passeport Hongrois (Passaporte Húngaro, Sandra Kogut, 2001) e 33 (Kiko Goifman, 2002).
Em linhas gerais, essa categorização compreende que o objeto fílmico se perfaz na medida em que a obra se realiza; portanto, os seus temas, as possíveis inflexões privadas ou públicas, e seus prováveis desdobramentos sociológicos, filosóficos ou mesmo políticos, só se constituem a posteriori. Isto é, trata-se de uma obra aberta e em construção em que o(a) realizador(a) se permite à autorreflexão junto com seu filme.
Premiada com L’Oeil d’Or no Festival de Cannes e com o Prêmio do Público no Santiago Festival Internacional de Cine (SANFIC) do mesmo ano, o filme de Tambutti dialoga então com o que Milena Gallardo e Alicia Salomone chamaram filmes da geração dos filhos da ditadura (2018), ora também conhecidos pela chave analítica da pós-memória (Seliprandy, 2018). Em comum, essas obras encaram o desafio de lidar com a transmissão de vivências com os regimes autoritários e as eventuais experiências traumáticas latentes no ambiente familiar. De acordo com estas pesquisadoras:
frente a la abundancia de testimonios de la primera generación, la segunda tiene dificultades para hallar las palabras con que referir sus experiencias, confirmando la ausencia de estas voces en los debates públicos. Dice la autora: “Muchas veces escuché la expresión ‘No he hablado de esto antes’; estaban [ellos/ellas] en el proceso de crear una nueva forma de subjetividad dentro de la memoria cultural” (Jara, 2016: 21). Desde la constatación de ese vacío, la indagación de Jara se concentra en articular y dar sentido a esas narrativas, mapeando los afectos y dilemas ético-políticos que ellas introducen en la escena sociocultural postdictatorial. (Gallardo & Salomone, 2018, p. 221).
Um desses interditos trazidos pelo filme de Tambutti é o suicídio de Allende, que é narrado pela realizadora reafirmando que «sem desejá-lo, Chicho abriu em minha família uma possibilidade que normalmente está fechada» (1:12:36 e 1:17:19). Nesse momento, o filme opera uma espécie de double bind, pois ao mesmo tempo em que abre uma operação de luto pelo suicídio de Salvador, de sua filha Beatriz — Tati, tia da realizadora — e de sua irmã Laura — outra tia da realizadora —, ele também elipsa o suicídio de Gabriel, irmão da realizadora e que participa ativamente em várias cenas do filme, mas cuja morte só é revelada pelos letreiros finais. Dadas essas perspectivas fantasmáticas do trauma, Tambutti evoca os espectros de Allende para, a partir de seu círculo íntimo, conduzir para o espaço público fricções que colocam em xeque os silenciamentos e as denegações de seus ambientes parentais e, por extensão, dos circuitos discursivos construídos pela reconciliação desde os anos noventa.
Como salientou Scherbovsky (2015, p. 242), o filme chegou a levar cerca de 5500 chilenos para as salas de cinema em sua semana de estreia, o que atesta a demanda social pela história pessoal e afetiva do ex-presidente chileno. Dessa maneira, pode-se dizer que o êxito nacional e internacional do filme revela a força estética — e também ética — dos silêncios e interditos como dispositivos narrativos que, sintomaticamente, contribuem para que os(as) espectadores também se sintam convidados(as) a contar as histórias de seus próprios Allendes.
Conclusão
Como se pode notar, as representações e reapresentações de Salvador Allende foram agenciadas de acordo com as demandas sociais e políticas de determinadas conjunturas históricas do Chile contemporâneo, além de serem filtradas pelo crivo biográfico de cada realizador.
Em primeiro lugar, a formação profissional de Helvio Soto e sua filiação à esquerda da Unidade Popular o levou a encontrar condições para uma coprodução internacional endereçada ao grande público dois anos após o golpe. Manejando dispositivos tradicionais como a narrativa linear pautada por coordenadas realistas de tempo e espaço, Il pleut sur Santiago elipsa o semblante de Allende tornando-o difuso e, portanto, acessível ao ‘público em geral’ das salas comerciais de cinema. Articulando-se dentro da sintaxe da denúncia política e das coordenadas solicitadas pela solidariedade ao Chile, no filme de Soto, a luta armada mirista é ensaiada, mas, para logo depois, amalgamar as vertentes socialistas e comunistas na representação de um mesmo velório.
Por sua vez, em diálogo com a gramática cultural promovida pela reconciliação, o Salvador Allende guzmaniano de 2004 sobrevive como rememoração. Isto porque, dar visibilidade e escuta ao ‘héroes anónimos’ da UP, a cinebiografia se mostra comprometida pela insígnia da ‘reserva de identidade’ proposta pelo programa oficial No hay mañana sin ayer lançado pelo presidente socialista Ricardo Lagos em agosto de 2003, o que permite suscitar a questão: de quais memórias a chamada ‘trilogia da memória’ trata? Em outras palavras, o conjunto de seu arco narrativo defende um Allende socialista, adepto da agenda mais radical das esquerdas? Ao contrário, as memórias ali presentes argumentam em prol da via legalista e negociadora defendida pelos comunistas? Ou ainda, por fim, esta segunda trilogia guzmaniana implicaria, sobretudo, em um exercício fenomenológico da memória que flertaria com um páthos nostálgico, um afeto que turva o campo da política?
O Allende littinista de 2014 se mostra, antes de tudo, existencialista, sendo ele mediado por dispositivos especulares, dentre eles a fotografia de Ernesto ‘Che’ Guevara, o retrato de sua filha mirista, o semblante de ‘Payta’, por vezes chamada pelo nome de sua esposa e os diálogos tête-à-tête com Augusto Olivares. Ora legalista, ora revolucionário no sentido castrista do termo, ora romântico, ele morre para se tornar imortal.
Pode-se notar, em linhas gerais, como as imagens cinematográficas de Salvador Allende se mostram como um signo potente capaz de oferecer coordenadas para as questões relativas aos estudos sobre o chamado cinema de exílio chileno, o cinema de solidariedade ao Chile, assim como àquelas concernentes à transição chilena na virada do século XX para o XXI. É preciso ressaltar como a imagem de Salvador Allende também cifra os programas políticos que disputavam espaço institucional e mediação social no governo da Unidade Popular ao dar indícios das filiações políticas de seus realizadores. Isso significa reconhecer as afinidades existentes entre os Allendes de Soto e Littin, pois enquanto o primeiro é desprovido de seu semblante para potencializar o feitio de seu martírio, o littinista se mostra clivado do início ao fim do filme, agonizando entre a feição da honra e a glória da luta armada. Já os espectros suscitados pelo filme de Tambutti evocam Allendes que estão além das questões políticas e ideológicas ao dar encarnadura ao ‘Chicho’, que não cessa de irradiar emoções e afetos, além da esperança como um potencial político para as gerações do tempo presente e futuras.
NOTAS:
[1] Não seria demasiado lembrar da influência de Louis Althusser, por exemplo, junto de Marta Harnecker. Editora dos Cuadernos Políticos de Educación Popular, ela atuou na equipe de edição da trilogia A Batalha do Chile (Patricio Guzmán, 1975-1979) no Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC).
[2] Cornejo (2013) considera que Soto teria desenvolvido uma trilogia composta pelos filmes Voto+fusil, Metamorfosis del jefe de la policía política e Il pleut sur Santiago, sendo os dois primeiros críticos da UP e o terceiro uma ode tardia ao Governo Allende.
[3] Em sua tese de doutorado, Joly chega a enfatizar a ausência de jornalistas chilenos em Cannes (2018, p. 442)
[4] A chamada Concertación foi uma aliança de partidos de centro e de esquerda construída desde em fevereiro de 1988 tendo em vista a atuação pelo “não” no plebiscito realizado em 05 de outubro daquele ano. Originalmente nomeada de Concertación de partidos por el no, a campanha logrou derrotar a continuidade do pinochetismo tendo sido fundamental para a transição democrática chilena até meados de 2010
[5] Lagos, R. (2003). No hay mañana sin ayer, p. 5. Disponível em https://bibliotecadigital.indh.cl/bitstream/handle/123456789/183/no-hay-manana.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[6] Disponível em https://www.tvn.cl/series/losarchivosdelcardenal/
[7] Disponível em https://www.chilevision.cl/chile-las-imagenes-prohibidas/promos/este-miercoles-no-te-pierdas-el-ultimo-capitulo-de-chile-las-imagenes
[8] Anónimo (1973, 11 de novembro). “Ricardo Boizard: El último día de Allende”, La Prensa, p. 3. Disponível em http://www.bibliotecanacionaldigital.gob.cl/visor/BND:217026. Tradução própria
[9] Ibid.
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